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O som, a fúria e a prova do pudim

Carlos Melo
01/03/2004

Aparentemente - e pelo menos por enquanto -, a crise em torno do caso WD parece ter sido contornada. Nos últimos dias, não surgiram fatos novos, até porque o burburinho de Brasília foi silenciado pelos tambores do carnaval e pela providencial mão do senador José Sarney. Fatos novos, neste caso, significariam elementos que ligassem o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, ao escândalo. Algo que apontasse para a conclusão de que Waldomiro agira sob o conhecimento e, mais, sob o comando de Dirceu. Nesse sentido, membros do governo e do PT parecem estar tranqüilos. No mais, só resta esperar pelos depoimentos e investigações. A semana que começa será fundamental, pois o céu pode tornar a ficar turvo com os depoimentos de Waldomiro e a depender da sanha e da agitação da oposição e da imprensa.

Todavia, a crise já causou males que não se restringem apenas à imagem dos petistas. O estrago pode ser muito maior e diz respeito à própria dinâmica do governo e da política daqui por diante. Independente de fatos novos by Waldomiro, a situação pode se complicar ainda mais. O affaire deu ensejo a um clima inóspito não apenas no âmbito da política, mas também da própria economia. O efeito do noticiário econômico dos últimos dias foi, politicamente, um desastre. O anúncio de que o Produto Interno Bruto se retraiu não consiste, em si, em grande novidade. Crescer 0,2% ou ficar negativo na mesma percentagem corresponde, é verdade, a alguns bilhões de Reais. Ainda assim, diante daquilo que se necessita em termos de crescimento contínuo e sustentável, a diferença é pouco significativa. Racionalmente, pode-se contemporizar, dizendo que o Brasil já experimentava, no final de 2003, algum crescimento. Politicamente, no entanto, as coisas são diferentes: o sinal (-) negativo ganha autonomia.

A evidência da recessão e a turbulência política acabam criando espaço para avaliações pessimistas - vindas de todos os lados e não só do PT -, despertando a percepção de que o país vive um governo que concilia incompetência econômica, indolência moral e inépcia administrativa. O que menos importa é se isto é real. No limite e como resultado de ações coletivas desencontradas, uma crise pode alimentar a outra. O quadro é perigoso, pois qualquer descuido pode levar ao recrudescimento da crise de confiabilidade que o governo tentou, a alto custo, evitar no ano que passou.

A crise pode comprometer a economia e não apenas pela ação temerosa dos agentes econômicos, mas, sobretudo, por, tendo paralisado o governo, tê-lo tornado presa fácil de novas críticas à política econômica. Críticas à ação do ministro Palocci, por exemplo, têm o poder de agitar o governo e o mercado, e são capazes de gerar volatilidade financeira e, portanto, mais turbulência política. Um ciclo de horrores, onde a política contamina a economia, que, ao se defender, agrava o quadro político.

Pode-se, racionalmente, argumentar que o que se fez em 2003 foi exatamente o que se podia fazer. É possível. Todavia, a estratégia de pisar no freio no primeiro ano deveria vir acompanhada de uma trajetória virtuosa em 2004. A reforma ministerial - presente nas cabeças dos formuladores do governo, já em novembro passado - tinha como objetivo primeiro reorganizar o governo administrativamente, dando ensejo ao desenvolvimento e ao seu espetáculo político. Para muitos, ela até tardou. Lula poderia começar janeiro já com nova equipe. Ainda assim, antes tarde do que muito tarde. Realizada em janeiro, a perspectiva era a de que o governo se encontrasse. Por meio de um "articulador-gerente", politicamente qualificado e respeitado, pretendia-se (e ainda se pretende) articular diversas iniciativas microeconômicas que, associadas à política macro, pudessem despertar o ciclo virtuoso do desenvolvimento. Note-se que, embora administrativa, trata-se de ação que necessita de forte impulso político. A ordem era incentivar o investimento econômico e viabilizar o crescimento. Setores e ministros destoantes seriam lançados ao mar. Mas o articulador-gerente foi pego quando alçava vôo e durante o mês de fevereiro o País não teve outro sinal que medisse o desenvolvimento se não a taxa Selic, do Banco Central. O raciocínio pode ser simplório mas é este: quanto menos juros, mais investimento produtivo; o que é igual a desenvolvimento. Como o BC optou pela prudência (que alguns julgam excessiva), a percepção dos atores políticos ficou ainda mais amarga: mais juros, mais recessão. Acredita-se, então, que o Brasil não voltará a crescer em 2004, pelo menos não num ritmo minimamente desejado, sobretudo num ano eleitoral. O ciclo se completa em espiral diante da vulnerabilidade vivida por José Dirceu. Mesmo vocalizando parte das críticas à política econômica, Dirceu acaba por circunscrevê-las ao partido e ao governo. Colocando-se à frente, despressuriza o ambiente, negocia eventuais mudanças impedindo movimentos bruscos e tão desatinados quanto desarticulados. Dirceu torna-se, na verdade, um anteparo para Lula e Palocci. Além, é claro, de estar sob a sua alçada e capacidade a responsabilidade de partir dele a agenda positiva e a ação do governo. Nos últimos quinze dias, a incapacidade do governo em dar respostas foi sinal de sua importância. Atingido, naturalmente ficou grogue e com pouca iniciativa, no primeiro momento. O tal "núcleo duro", com Dirceu abatido, começou a ser chamado de "núcleo mole". Dirceu sobreviverá ao escândalo WD? É provável, mas a resposta implica numa incerteza: desde que não apareçam novos bichos. O que, em si, já é fator de instabilidade e quem fica desguarnecido não é apenas Dirceu, mas também Palocci, Lula e, por decorrência, todo o governo e a economia do país.

Enfim, têm-se aí o caldo de cultura para o aumento da virulência crítica ao ministro da Fazenda e às autoridades monetárias do país, assim como ao Fundo Monetário Internacional (FMI). A tendência será procurar um culpado, com "som e fúria, significando nada" (Macbeth). O certo é que a pressão sobre o presidente da República será maior e é possível que tenha chegado, enfim, o momento da prova do pudim. Lula suportará a pressão sobre Palocci? Só se saberá provando o pudim.

Carlos Alberto Furtado de Melo - Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política - PUC-SP) e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.
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