Um olho no peixe, outro no cardume.
Carlos Alberto Furtado de Melo
Na crise, o planejamento político se reduz à máxima "a cada dia a sua agonia". Foi assim nos últimos anos. No crescimento, os horizontes se expandem, planejam-se as próximas eleições e as próximas décadas. Vislumbram-se movimentos sucessórios; fusões de forças políticas; eliminações, em longo prazo, de partidos. Tudo especulação, é certo. Afinal, como no folclore do futebol, não se pode "combinar com os russos". Mas a construção de cenários reordena o sistema político, define alianças, estabelece nova lógica e determina racionalidades. Os atores nem sempre têm consciência de seus atos e agem, na maioria das vezes, intuitivamente, mas passam a perseguir alvos mais nítidos. Se nos primeiros meses de 2004 administrava-se "a agonia do dia", hoje políticos esquecem os gatos e se organizam com um olho no peixe e outro no cardume.
Passadas as eleições municipais - com previsível crescimento do PT, independente do resultado paulistano -, a primeira preocupação será garantir politicamente a continuidade do crescimento econômico, evitando surpresas, articulando maiorias no Congresso, organizando a reforma ministerial. Com este objetivo, o presidente engoliu a seco um sapo daqueles quando jantou com o senador Antônio Carlos Magalhães. Lula percebeu que no governo não há refresco: sem maioria moderna e reformista, os avanços pretendidos passam por concessões à oligarquia. À distância, FHC saboreou sua melhor ironia, guardada e envelhecida para o momento. Bem sabe o ex-presidente que os projetos de poder exigem sacrifícios e corroem sectarismos. É assim: sem maioria sólida, sem mais canais abertos com a oposição reformista, o governo busca consolidar o ciclo virtuoso como um imperativo. Faz o que deve ser feito, porque é preciso navegar.
Da mesma forma as coisas se estabelecem no interior do PT. A tarefa consiste em organizar o time para 2006, selando acordos internos. No âmbito federal não há o que se discutir. Até um poste sabe que Lula é candidato à reeleição e, no PT, naturalmente, essa vaga ninguém tasca. Os maiores problemas residiam na constelação paulista. Coube, portanto, definir desde já os papéis para que a natural ansiedade política não ponha o crescimento a perder. Assim, a disputa da legenda para o governo do estado, ao que tudo indica, foi liquidada com vantagem para Aloízio Mercadante. O senador tem conquistado espaços importantes, é bom de voto e está enraizado em importantes setores sociais. A vitória de Paulo Skaf para a presidência da Fiesp, por exemplo, fortalece suas posições no governo federal; a proximidade com os capitães da indústria lhe dá o apoio de um setor econômico relevante. Além disso, poderá concorrer beneficiado por um momentâneo vazio de lideranças antipetistas. Em 2006, a maior possibilidade é a de que Maluf seja apenas história; José Serra, se não ganhar a eleição municipal, também. Se ganhar, fica prefeito. No pós Alckmin, os tucanos terão que formar novas lideranças, o que leva tempo. Se não surgir nenhum fenômeno, parece plausível afirmar que as chances de Mercadante não são desprezíveis, mas, evidentemente, dependerá do sucesso do governo Lula e o sucesso do governo dependerá destes e de outros acertos.
José Dirceu e Antônio Palocci, por exemplo, também buscam acordo. Após duro desgaste, Dirceu consolida a imagem de homem do PT no governo. Percorre o país não apenas para ajudar candidatos aliados, mas também para se robustecer. A proximidade com a base aliada, o apoio à reeleição no Congresso e o perfil intervencionista mais acentuado são importantes para quem espera contar com a providencial gratidão desses setores. Pensando no futuro, escolhe os inimigos para as disputas que virão. Quanto mais Dirceu bate nos tucanos, menor a possibilidade de realinhamentos partidários que modifiquem as condições de competitividade, no partido e na base, para as próximas eleições (2006 e 2010). Se uma candidatura a presidente dependesse exclusivamente da articulação das bases e dos aliados, seria possível que o candidato do PT, em 2010, fosse mesmo Dirceu. Seus problemas, no entanto, estão na mídia, no ministério público, no mercado financeiro e na oposição que guarda alguma identidade programática com a equipe econômica. Como se sabe, espaços onde proliferam as simpatias e apoios ao ministro da Fazenda.
Antonio Palocci consolidou credibilidade dentro e fora do Brasil e é ainda o maior fiador do governo Lula. Principal responsável pelo sucesso atual, o ministro vai bem na opinião pública. Caiu nas graças da mídia e de setores econômicos como o financeiro e o agro-exportador - neste, pela proximidade com os ministros Rodrigues e Furlan. Conta até mesmo com a simpatia de setores reformistas no PSDB e no PFL. Sua equipe desempenha papel formulador e animador das reformas mais importantes e eficientes do governo. Dependesse apenas dos agrupamentos que lhe devotam admiração, seria candidato à sucessão de Lula já em 2006. Mas, paradoxalmente, o sucesso de Palocci torna vulnerável a si e aos membros de sua equipe, fazendo com que o ministro precise freqüentemente se resguardar e evitar o corpo-a-corpo. A maior visibilidade o prejudica nas disputas internas e em setores mais tradicionais do empresariado, como o setor industrial, por exemplo. Neste aspecto, uma aliança entre Dirceu e Mercadante (em virtude da "nova Fiesp"), no longo prazo, pode se configurar numa nova dor-de-cabeça para Palocci. No momento, o melhor para Palocci é não aparecer, é evitar que o mar faça marola.
Assim, onde um é forte, o outro é fraco e vice-versa. Na crise, os avanços de um anulavam as conquistas do outro. Hoje, o crescimento e as melhores perspectivas de Lula para 2006 estabelecem uma espécie de "pax petista". O noticiário é rico em especulações que podem ser interpretadas assim: Mercadante disputará o governo do estado; dona Marta continua prefeita ou vira embaixadora (já que "Paris vale bem uma missa"); Genoíno volta à Câmara na expectativa de virar seu presidente; João Paulo vira ministro e os ministros Dirceu e Palocci se guardam para 2010, quando o pau vai quebrar de verdade. Se chegarem até lá, tanto Dirceu como Palocci estarão alicerçados por forças vivas e poderosas da sociedade. O jogo será para gente grande e alguém terá que ser lançado ao mar.
Evidentemente, nada garante que os planos se realizarão. Há outros atores em cena e na política o inesperado, que ainda não surgiu, conta muito. Ações individuais são importantes e os fatos aparentemente isolados acabam por estabelecer novas circunstâncias. Acontecimentos aparentemente desconexos podem conformar um vigoroso processo. Ao (bom) político cabe encontrar os fios da meada e articular projetos possíveis. Não apenas enxergar o peixe, mas antever os cardumes. Os atores políticos mais relevantes do PT estão procurando juntar suas pontas. Na oposição também, mas esta é outra conversa.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Mestre e Doutor em Ciência Política; professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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