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Gatos pardos, mas nem tanto

Carlos Alberto Furtado de Melo
04/10/2004


Passado o primeiro turno, a mais óbvia das constatações é a que aponta para o crescimento do PT e do PSDB. Ambos saem fortalecidos nacionalmente e melhor posicionados para as próximas disputas. Era de se esperar. Mas a emergência de PT e PSDB não significa polarização clara e definitiva entre os dois partidos. Polarização tínhamos no passado, com posições políticas e ideológicas inconciliáveis postas sobre a mesa, com todos em volta dispostos a virar a mesa. Hoje, os atores mais relevantes se assemelham e guardam um grande nível de racionalidade e pragmatismo. Ambos disputam o centro e empunham bandeiras do reformismo mais ou menos dentro dos mesmos marcos. É claro que há falcões de lado a lado; é claro que se engalfinharão e muita água e algum sangue (figurativo, é claro) pode rolar. Ainda assim, temos agora, pelo menos aparentemente, dois partidos mais consolidados e implantados no sistema político, tendendo à formação de dois grandes blocos. O centro do espectro político ainda é cinza, mas os gatos já não são tão pardos. Só falta mesmo uma boa reforma política; enquanto isso, a tendência é de realinhamentos e reacomodação temporária.

De 2002 para cá, o PT assumiu o governo federal e adotou uma política econômica pragmática. Com os resultados, o partido do presidente Lula procurou qualificar-se para o processo eleitoral e chegou a este primeiro turno das eleições municipais com boas condições de competitividade. Grosso modo, pode-se dizer o PT se favoreceu de diversos fatores: a) o bom momento econômico vivido pelo governo federal, que reforça a popularidade do presidente Lula; b) a organização e a estrutura partidária que possui; c) as vantagens de gerir a máquina federal; d) a qualidade de muitas de suas administrações municipais. Já o PSDB se beneficiou por ser a mais visível oposição e pelo tipo de oposição que faz. Com sua ala propositiva, dividiu alguns louros e reformas com o governo; já a sua banda mais radical soube capitalizar as mazelas, deficiências administrativas e as escorregadelas éticas do executivo federal. Além disso, é claro, os tucanos foram favorecidos pelo controverso sentimento que o Partido dos Trabalhadores parece continuar despertando em amplos setores do eleitorado (anti-petismo). No que se refere às suas qualidades administrativas, sobretudo em São Paulo e Minas Gerais, o PSDB explorou com enorme eficiência o bom momento dos governos Alckmin e Aécio. No caso de paulistano, teve o mérito de pautar a eleição, trazendo o tema da predileção de seu candidato (a saúde) para o centro do debate.

Parece natural que as duas agremiações se apressem em proclamar a vitória. Realmente estão melhor posicionadas que ontem, mas parece temerário afirmar que há uma vitória esmagadora de uma sobre a outra. Talvez se esperasse mais do partido do governo, mas hegemonia como nos primeiros tempos de FHC e Plano Real não tem mais. Ainda assim, dos grandes, o PT foi o único que cresceu em número de municípios; foi o mais votado no primeiro turno; implantou-se nos grotões e se consolidou nos grandes centros. Uma eventual derrota em SP pode ficar como um travo na garganta dos petistas, mas aí tende a valer o silogismo de que "em eleição se perde e se ganha". Do governo federal ninguém poderá falar que faltou empenho e desempenho. Note-se que Marta Suplicy recebeu menos votos (35%) do que a aprovação de seu governo (43%). Neste aspecto, nem mesmo o governo municipal atrapalhou. Das idas e vindas da candidata talvez não se possa dizer o mesmo. Equívocos não faltaram: a tática do medo tal 2002, por exemplo. No mais, perder no quesito simpatia para José Serra parece ser mesmo o fim da picada. No segundo turno, Marta estará por conta de sua responsabilidade para fazer um limão ou uma limonada.

Outros resultados permitem novas considerações. A primeira é a também óbvia perda de espaço do PFL. Onde o partido colheu bons frutos não foi necessariamente por virtude sua. César Maia - que durante a campanha derramou elogios a Lula - tem autonomia e se hoje está no PFL, amanhã poderá, ao sabor de seu interesse e projeto, estar em outro partido; Moroni Torgan, do Ceará, é oriundo dos tucanos. Nos demais lugares, o PFL se consolidou como linha auxiliar do PSDB. No embate interno, apressa-se quem disser que o senador Antônio Carlos Magalhães sai enfraquecido na queda-de-braço com o senador catarinense Jorge Bornhausen. O enfraquecimento do baiano apenas expressa as fragilidades de um partido que se afastou das benesses do governo federal, que é justamente a crítica a Bornhausen que cala mais fundo. Sem a máquina, o PFL é pouco. A desinteligência interna tende a aumentar e naturalmente alguém deve espirrar para fora do barco ou ser expelido. O que sobrar será base de apoio do PSDB (no caso de Bornhausen vencer a parada) ou do governo (no caso de ACM). A canibalização parece um destino não improvável.

No PMDB as coisas também se complicaram. Cada vez mais, o partido se afasta dos centros urbanos e dos núcleos de decisão do país. Continuará administrando um número elevado de pequenos municípios. Será importante como base eleitoral dada sua capilaridade, mas não será central. Além disso, alguns núcleos de poder no PMDB se deram mal. Em São Paulo, Quércia e Temer se complicaram no apoio que deram à candidatura ressentida de Luiza Erundina (3,74%). No Rio, a direção nacional viu frustrada sua intenção de ter Anthony Garotinho como instrumento de pressão política para 2006. Por seu desempenho, Garotinho não se qualifica como candidato competitivo e parece deixar explícito que nos grotões (seja do Nordeste ou do Rio de Janeiro) a máquina federal é relevante. É verdade que no Senado a história é outra, ainda assim não fosse a proximidade com a máquina, talvez o destino da sigla fosse o mesmo do PFL.

Verificar apenas a contabilidade de PT e PSDB, portanto, não basta. Mais do que os resultados eleitorais propriamente ditos, será necessário observar como se juntarão os cacos. Como e com quem parcerias e acordos serão estabelecidos com vistas às disputas estaduais. Num segundo momento, contarão o desempenho econômico e político do governo e, por decorrência, a popularidade do presidente. Agora, os aliados lavarão a roupa suja da eleição, queixosos do tratamento federal e das trombadas locais; apresentarão faturas e saldos. Uma reforma ministerial será inevitável e o governo deverá fazê-la de forma a tornar as peças do tabuleiro mais representativas, tendo em vista a governabilidade no Congresso e a organização do time para as eleições de 2006. Organizar o time significa aumentar o grau de eficiência do governo, tornando-o menos vulnerável ao discurso da oposição. Mas também consiste em dar visibilidade a atores políticos que possam construir candidaturas regionais competitivas. Em São Paulo, Aloísio Mercadante já deu a sua largada.

No PSDB, ainda há uma incógnita: como se portará daqui por diante? Geraldo Alckmin deu um grande passo e sai fortalecido. Mas não se pode afirmar que será o homem de 2006; até mesmo porque a precipitação não parece combinar com seu estilo precavido, quase mineiro. Sua candidatura dependerá de alguns fatores, os mais importantes serão a satisfação do eleitorado com o presidente Lula e a capacidade dos tucanos em apresentar candidatos regionais competitivos. Passada a quentura eleitoral, o saldo eleitoral permitirá aos tucanos abrandar a temperatura. Dar espaço à ala "propositiva associada", discutindo os projetos e reformas do governo federal. O contrário também é logicamente possível e esta hipótese não deve ser descartada. Mas o eleitorado urbano que o PSDB conquistou - e mesmo sua base tradicional - tende a exigir e valorizar o decantado equilíbrio dos tucanos. A maior tendência é que se estabeleça a tática de bater no ferro e na ferradura, estabelecendo alternâncias táticas entre estas duas posições sem que isto signifique necessariamente dualidade ou ambigüidade de ação. Evidentemente, o olho em 2006 procurará punhados de apoio nos partidos que, por qualquer motivo, entrem em desacordo com o governo. A atração é do jogo.

Carlos Alberto Furtado de Melo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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