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Fim de novela e cenas dos próximos capítulos

Carlos Melo


Um amplo balanço eleitoral permite afirmar que o Brasil saiu das urnas melhor do que entrou: o governo não se esborrou e vários perigos foram afastados. Houve uma maior e melhor distribuição nacional de poder: o PT, que detém o governo federal, teve essa condição expressa pelo elevado número de votos obtidos no primeiro turno (entre os grandes, é o maior) e pelo maior enraizamento no território nacional; o PSDB demonstrou força condizente com o fato de ter ficado durante 8 anos no governo federal e de ter emplacado uma concepção de administração pública, de racionalidade econômica e de condução republicana do Estado. Embora ainda permaneçam relevantes para o jogo das composições partidárias, PMDB e PFL saem menores do que entraram (o que é coerente, dada a condição de não-protagonistas que gradativamente assumiram na última década). Os pequenos partidos se reforçaram e cresceram: PDT, PPS, PSB e o PL aumentam o cardápio político eleitoral e dificultam os cálculos das composições para eleições mais gerais; PTB e PP continuam a expressar a força de setores tão conservadores quanto anacrônicos, fincados no fisiologismo, ainda reais no cenário nacional, porém cada vez menores e ou menos expressivos.

No mais, nenhuma liderança populista e ou personalista conseguiu destaque. Em São Paulo, Paulo Maluf talvez tenha finalmente encontrado o seu ocaso e Orestes Quércia a sua irrelevância; no Rio de Janeiro, Anthony Garotinho viveu a desmoralização; no Nordeste, ACM e Sarney iniciam o outono dos patriarcas. A quem se recordou de Íris Rezende, deve-se dizer que seu espaço nacional é desprezível. A dois anos da eleição presidencial, o principal candidato é ainda o presidente Lula que, favorecido pela máquina, pode ser também beneficiado por uma conjuntura externa sem abalos e por tempos de relativa prosperidade econômica. De qualquer modo, o despontar de Geraldo Alckmin como a mais vistosa ave tucana - e eventual adversário de Lula - antes de assustar deve tranqüilizar quem se preocupa com a manutenção do padrão de condução da política econômica dos últimos anos. Em termos de riscos e sustos, 2006 nem de perto lembrará 2002. Outsideres são imprevisíveis, mas mais raros e menos possíveis quanto maior a consolidação institucional do país e a solidez do sistema partidário. No Brasil, as instituições vão se consolidando e o sistema partidário brasileiro - confuso em cheio de defeitos - progride sem evoluir, se calcificando na falta de vontade reformista verdadeira.

Por sua vez, a melhora do ambiente econômico neutralizou a federalização do debate, o que impediu, de qualquer modo, que o governo federal fosse apontado como responsável por todos os males. A oposição se calou, mas a situação tampouco conseguiu tirar grande proveito. No que se refere a questões mais locais, pode-se dizer que mais uma vez o eleitor pensou com cabeça de munícipe, condição a que realmente fora chamado a participar. Deu-se mal quem pensou no contrário. O transporte, a saúde, a educação, o buraco em frente de casa, a assistência social foram as pedras do caminho. O ministro da Fazenda quando surgiu o fez como "Doutor" Palocci, médico sanitarista entusiasta do tal de CEU Saúde. A equipe econômica, que no princípio do ano tudo tinha para ser o Judas da temporada, passou incólume pelo mar revolto que se lhe insinuava. Nesse sentido, a novela acabou bem.

E assim, um cenário de maior pressão à esquerda do PT parece pouco provável. Errará quem raciocinar com o sensacionalismo de alguns jornais. Os "Heavy Metal" ou "Falcões" deram-se mal em Porto Alegre, no interior do Rio Grande do Sul e em São Paulo; em Vitória (ES), o candidato petista se elegeu com um discurso moderado e em Fortaleza (CE), tudo indica que o eleitor resolveu pregar uma peça no o status quo de partidos e lideranças. O voto em Luizianne Lins parece mais uma expressão de protesto do que de apoio. De resto, foram vitoriosas as campanhas que expressavam administrações pragmáticas e centristas, como as de Fernando Pimentel (Belo Horizonte, MG), João Paulo (Recife, PE), Marcelo Déda (Aracaju, SE), Godofredo Pinto (Niterói, RJ), sem contar a eleição do neo-moderado, "coroinha da baixada", Lidnberg Farias (Nova Iguaçu, RJ).

No PSDB, as glórias de hoje cicatrizam as mágoas do passado. José Serra, depois de mais de 40 anos de vida política ganha, por eleição, seu primeiro cargo executivo. Mas, se os erros políticos do PT paulistano e a rejeição pessoal à prefeita até aqui o favoreceram; daqui por diante a dinâmica da campanha colocará uma situação difícil. Será cobrado, pois se comprometeu a de fazer tudo, mais e melhor do que foi feito por Marta Suplicy, tendo, por outro lado, uma complicadíssima situação fiscal. Apelar para o populismo e para a irresponsabilidade com as finanças municipais não faz o seu estilo; criar novos impostos e taxas, nem pensar (será a morte, entendida como traição). Falar de uma "herança maldita", no mínimo, não seria original. Buscar solução "com o presidente Lula" (a fantasia da prefeita) não parece plausível. Haja "planejamento" para não frustrar expectativas e nem ser (agora ele) acusado de estelionato eleitoral. Terá, enfim, a chance para mostrar serviço e comprovar que é mesmo tudo o que sempre disse a seu próprio respeito. Só quem viver verá!

De resto, os próximos meses serão para juntar os cacos. A prioridade do PT federal será garantir a governabilidade e preparar o jogo de 2006 por meio da formação de uma maioria parlamentar que possa aprovar a "agenda do desenvolvimento". Uma nova novela. Esse objetivo passará evidentemente pela recomposição da base aliada e do próprio governo, que se adequará aos vencedores de 2004. Uma reforma ministerial está, como se sabe, no horizonte. No entanto, somente as próximas semanas e os próximos lances de vencedores e vencidos é que poderão indicar o que o governo pretende fazer e o que efetivamente poderá fazer. De nada valerão as intenções do presidente e dos seus principais ministros sem que antes se combine com os "russos" que estão na base aliada e na oposição. E o leque de opções de vários desses "russos" parece ter se ampliado com o novo desenho político do país. O custo será mais alto e a negociação mais dificultosa. A eleição das mesas das duas Casas no Congresso, a postura do PMDB diante da disputa e do governo e a possibilidade de interlocução com a oposição, fortalecida pelas urnas, acabam de entrar em destaque. Essas serão as cenas dos próximos capítulos.


Carlos Alberto Furtado de Melo, Doutor em Ciência Política pela PUC-SP e professor de Sociologia e política do Ibmec São Paulo

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