O sapo não pula mesmo por boniteza
Carlos Alberto Furtado de Melo
Os últimos dias trouxeram tantas cenas, imagens e declarações no campo da esquerda brasileira, em geral, e do debate interno do PT, em particular, que poderia confundir aqueles que não dominam esses signos. Na verdade, o que se viu foi uma enorme seqüência de fatos coincidentes no tempo, mas que não guardam grande poder para mudar o rumo dos ventos. Em que pese a ventania, tudo está, e tende a permanecer no curso de uma dinâmica política que não permite muita mobilidade de ação e muito menos transformações rápidas: o governo vai, gradativamente, mudando de cara, assumindo um feitio que, dizem seus críticos, é conservador. Este é o fato: o PT, mas, sobretudo, setores da esquerda petista, vão perdendo espaço no governo; o presidente vai se curvando, ainda mais, à dureza da realidade do sistema político nacional e é natural que os prejudicados reclamem. Tecnicamente, esse fenômeno é conhecido como jus esperniandis. Independente disto, o presidente Lula vai definindo seus caminhos e fazendo suas escolhas, amparado, sobretudo, no pragmatismo que sempre o caracterizou pessoalmente.
Assim, a demissão de Carlos Lessa da presidência do BNDES repercutiu em tons de emoção e dramaticidade pela coincidência com vários fatores e incidentes, entre eles: a) a morte do economista Celso Furtado; b) a reunião de avaliação do diretório Nacional do PT (e as entrevistas e declarações daí provenientes) e; c) o anúncio do desligamento de vários colaboradores do presidente. Celso Furtado, como se sabe, dedicou sua vida ao pensamento nacional-desenvolvimentista da esquerda nos anos 50 e 60. Tornou-se um ícone e sua morte acabou cercada de simbolismos. Como disse o prefeito César Maia, seu passamento encerra o século XX de uma vertente econômica do Brasil. A essa vertente se filia, numa dimensão infinitamente menor, o ex-presidente do BNDES que, durante sua gestão, se caracterizou como um boquirroto, chamado de anacrônico, politicamente desastrado. Naturalmente, em que pese a dor que deveras sentem, Lessa e seus seguidores pegaram uma carona (simbólica, é claro) na morte de Furtado. Para além do sentimento de perda e de todos os simbolismos havidos durante o velório (cantou-se o hino da Independência), as queixas e reclamos diante da demissão tende a perderem-se no redemoinho da conjuntura. Guido Mantega assume numa postura tão pragmática como a que mantinha no Planejamento. Tende a trocar uma ou outra cotovelada com os ministros Furlam e Palocci, pois também nutre intimamente uma avaliação "desenvolvimentista" do que acredita ser o papel do Estado. De qualquer modo, suas rédeas estarão nas mãos de Lula, que pode puxá-las ou soltá-las mais facilmente do que era possível em relação a Carlos Lessa, um corcel indomável.
Quanto ao PT, já se sabe que daqui por diante os decibéis no partido se elevarão. 2005 será ano renovação das direções partidárias em todos os níveis. Como o mecanismo estabelecido para isto será o voto direto dos filiados, o grau de disputa e a radicalidade dos discursos serão muito maiores que neste ano, onde todos guardaram posições, preocupados com os resultados municipais. Os grupos mais à esquerda, naturalmente, cuspirão fogo para sensibilizar os filiados desgostosos que sumiram das ruas e das bocas-de-urna. Os moderados não poderão ficar muito atrás, sob pena de perder "as bases", dando vazão à tradicional ambigüidade discursiva que possuem. Essa ambigüidade ficou fora de cena nos últimos meses, mas por uma questão de sobrevivência e disputas de espaços, no PT e no governo (e, em certa medida, também por índole), tende a reaparecer no noticiário. É nesse sentido que as declarações de João Paulo Cunha, Aloízio Mercadante e José Dirceu devem ser compreendidas -- ainda que, de algum modo, fossem potencializadas pela mídia (uma leitura apurada das entrevistas que têm concedido percebe que nem sempre as manchetes foram completamente fiéis ao conteúdo ou à dimensão das declarações).
No mais, há também a disputa no interior do governo com, pelo menos até aqui, a aparente vantagem para o ministro Palocci (não é tão grande quanto se anuncia, mas sob vários aspectos é inegável). João Paulo, Mercadante e Dirceu têm que buscar o abrigo dos setores que podem exercer ainda algum nível de pressão sobre o presidente. Provém daí um tom mais ou menos crítico desses atores. Ao contrário do passado, as informações que circulam dão conta que Lula chamou para si a responsabilidade da rearrumação do governo. O presidente, mais calado que de costume, não parece disposto a pedir opiniões que não quer ou ouvi-las num nível maior do que considera conveniente. O tempo das consultas excessivas e do "processo indecisório" (que caracterizou a última reforma ministerial), garantem os mais próximos de Lula, não se repetirá. O silêncio político atual, portanto, vai deixando os atores ansiosos e assustados. E, assustados, reagem como podem. Não tenha dúvida, haverá ainda muito barulho até que a reforma ministerial se conclua (embora seja mais rápida que a anterior). Além disso, o barulho, no PT, continuará muito além: 2005 a dentro.
Ainda assim, há que se reconhecer que o barulho no PT já não é tão importante e nem tão qualificado quanto antes. Os quadros mais importantes e respeitados estão no governo e se posicionam com muita cautela, quando não se calam. É por isso que figuras secundárias, como Silvio Pereira, por exemplo, acabam assumindo espaços na mídia (Revista Época, 24.11.2004). Pela importância real que possui, suas declarações devem ser relativizadas. Da última vez em que se colocou, passou por trapalhão e acabou desculpando-se (Jornal Valor Econômico). À opinião de Pereira quanto ao maior endurecimento em relação ao mercado financeiro devem-se contrapor o alívio dos depósitos compulsórios dos bancos, anunciado em meados de novembro. Nessa área, a opinião de Pereira não conta. Se algo, um dia, ocorrer nesse sentido, será uma decisão evidentemente mais apoiada no raciocínio técnico de Meireles e nas ponderações políticas de Palocci do que no discurso fácil, internista e repleto de clichês do secretário-geral.
Por último, ressalte-se que a euforia e as ilusões petistas em relação ao governo de Lula, ao que parece, estão chegando ao fim. O sistema político partidário brasileiro (que exige coalizões e a prática do fisiologismo), assim como as características do capitalismo internacional - no qual o país está completamente emerso - não permitem muito mais do que isso aí mesmo. O negócio é tentar navegar nessa realidade e expressar eficiência jogando esse jogo. Para isto é imprescindível manter a governabilidade, fazer a economia crescer e distribuir o que for possível contando com o que se tem de efetivo. Ao que parece, não tem jeito, pelo menos até que se possa emplacar uma reforma política que signifique, em algum grau, uma mudança de qualidade. A desilusão -- e ressalte-se isto - de uma vida dói. Alguns podem pedir o boné e ir embora, a outros, como ao presidente da República, isto não é possível. Não dá. O que lhe resta é teimar com alguma ambigüidade, buscando juntar a rigidez macroeconômica com alguma dose de ousadia heterodoxa aqui e ali. De objetivo, terá mesmo que mostrar serviço na área social (o que ainda não fez e, talvez, seja esta a maior dívida do PT para com Lula). E garantir o crescimento econômico e não descuidar da maioria parlamentar, posto que no Congresso Nacional a governabilidade é jogada dia após dia. Para isso, cabe a Lula a difícil - e no frigir dos ovos, solitária - tarefa de conduzir a reforma de seu governo, se apartando de velhos amigos e companheiros (o que deve ser doloroso para o presidente) e se aproximando de antigos inimigos, o que, certamente é, no mínimo, indigesto. FHC também passou por isso e cansou de fazer alusões sociológicas e poéticas à "solidão do poder".
E, nesses limites, o governo vai mudando sua feição do modo como pode e não como quer. O sapo não pula mesmo por boniteza, mas por precisão, como já se disse (Guimarães Rosa). Ficando cada vez mais com cara de tucano, o PT, que vai restando no governo, se equilibra, também, no muro do possível.
Carlos Alberto Furtado de Melo - doutor em Ciência Política pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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