"Deixa a vida me levar"
Carlos Melo
Até aqui, pelo menos, pode-se dizer que entre mortos e feridos salvaram-se todos. O governo vai encerrando o segundo ano de mandato sem uma grande realização, mas também sem um desastre de monta. Sarney não queria ser o “síndico da catástrofe”; já Lula vai se transformando no zelador de um prédio com vazamentos e abalos estruturais. Reformar é preciso, mas o condomínio nem sempre se entende. As circunstâncias, no entanto, também agem e impelem fuga para frente, fazendo com que o Congresso por fim aprove medidas realmente importantes – aperfeiçoando-as, inclusive. Naturalmente, velhos incrédulos continuam duvidando, menos por morbidez do que pelo prazer de estarem certos. Novos crédulos, após assistirem “Entreatos” e “Peões”, dizem simpatizar com a história pessoal do presidente, mas acreditam desconfiando. Parece-lhes que melhor é melhorar pouco do que o risco de piorar muito. Já velhos crentes se decepcionam com o tamanho da obra. Perguntam frustrados se é só isso que o presidente tinha a oferecer. Enquanto a massa entusiasma-se com a percepção de novos ventos, as elites políticas (de todas as legendas) estilhaçam-se.
Os últimos acontecimentos envolvendo os partidos da base governista denotam, assim, menos uma crise do governo (ou de governabilidade) do que denunciam a precariedade das agremiações partidárias, com as quais o Executivo é forçado a se relacionar. Sejam de situação ou oposição, não há homogeneidade nos partidos e os interesses pessoais e regionais arrastam para as calendas a possibilidade de o sistema reformar-se a si mesmo. O país é grande e heterogêneo, a possibilidade de consolidar partidos nacionais acaba por sustentar-se quase que exclusivamente na eventual existência de um ser de carisma extraordinário. Projetos são sempre controversos e demorados – e às vezes feitos para não serem seguidos. Entre a necessária reflexão na elaboração metódica e disciplinada de propostas e a ousadia nas disputas e quedas-de-braço, os políticos ficam com a segunda alternativa.
Desse modo, o presidente Lula, aliado ao ministro Palocci e à equipe econômica, vem assumindo a condução do processo acima dos partidos, já que eles pouco podem contribuir no momento. No cenário que se vê, não há forças partidárias capazes de disputar espaços de poder por meio de projetos de nação (se é que eles ainda são possíveis). Fala-se muito, mas realiza-se pouco. Ainda agora, Carlos Lessa fazia estardalhaço no BNDES. Quando foi demitido, acorreram à sua porta não mais do que duzentos sobreviventes do nacional-desenvolvimentismo e a coisa ficou por isso mesmo. Os projetos surgem mesmo é do governo e da dinâmica social produzida por ele e pelo desenrolar das tais das forças produtivas nacionais e internacionais. Dos partidos só resta esperar os votos. Mas, naturalmente, isso tem preço e o governo paga com composições, coalizões e liberações absolutamente legítimas do ponto de vista constitucional, mas nem sempre apreciadas pela ética e pelo imaginário popular.
Desconexões nos “partidos-ônibus”
No momento, as atenções se voltam para a pancadaria no PMDB. Um dia, o sociólogo FHC chamou o ainda MDB de “partido-ônibus”, uma vez que a legenda abrigava indistintamente todos os que queriam achar o caminho da luta contra a ditadura. De algum modo, quis dizer que aqueles que ali estavam eram também passageiros. Depois que o “condutor”, Ulisses, morreu, sucederam-se apenas “cobradores”. Mas parece não haver, no momento, acordo também em torno de quem cobra e o que cobrar. Em se tratando de PMDB o “racha inevitável” nunca é seguro e certo, pois que tem sido a condição para estar aqui e ali ao mesmo tempo; possibilidade de se colocar os pés em todas as canoas. As bancadas, na sua maioria, “não faltarão” ao governo e ao “país”, como enfatizam os discursos. O certo é que enquanto os parlamentares precisarem dos serviços e favores do Executivo, o jogo será esse mesmo.
Mas nos outros partidos as desconexões não são menores. No PPS, luta-se pelo comando da legenda. Roberto Freire é o vínculo histórico que representa o antigo partidão (PCB), suas críticas e ainda alguns de seus princípios. Ciro é cristão novo e mobiliza aqueles que fazem a política mais pragmática. Não é à toa que, também aí, as bancadas sejam mais governistas do que as direções. Quem tem mandato opera com resultados que dependem da liberação de verbas e do preenchimento de espaços administrativos. No PSDB, há igualmente uma disputa que não consegue mais ser abafada. Os antigos caciques ainda olham o partido pelas lentes de São Paulo. Os novos querem respeito à diversidade. A presidência nacional dos tucanos e a definição das lideranças das bancadas vivem também nessa tensão que o poder de antes amoitava. Mesmo o PFL, que sempre respeitou os currais, começa a discutir se eles devem ter liberdade para transitar muito além de seus domínios. Obviamente, os interesses regionais se impõem de forma reativa e somente quando as coisas na província não vão bem é que se recorre à holística partidária. Não foram outros os motivos que fizeram, por exemplo, que se selasse a paz do PFL nacional com seus congêneres da Bahia.
Tido como exemplo de coesão na ação, até o PT ameaça se desmantelar. A diversidade de avaliações em relação às eleições municipais são provas disto. Não foi apenas para lavar as mãos que a “ex-prefeita-em-exercício”, Marta Suplicy, por exemplo, deitou culpas ao rosto – como diriam os portugueses – do governo Lula. Há, sim, um setor no partido que exerce forte influência sobre Dona Marta e que expressa contrariedade em relação à política federal. Esta discordância veio à tona na votação da Medida Provisória que deu status de ministro ao presidente do Banco Central, Henrique Meireles. A política é volátil, mas alguns corações são líricos. Difícil olhar para o retrovisor e ver que o partido lúdico e utópico ficou para trás. Assim como a Itabira de Drummond, hoje o PT “é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói”, reclamam os corações mais singelos. É a vida, mas o resto não é silêncio, evidentemente. Há uma visceral disputa com Brasília. Mas, sejamos sinceros, para os petistas do governo federal, enfronhados no dia-a-dia do Poder Executivo, bastaria que o partido não interferisse, não atrapalhasse; ainda que doesse, que quedasse e se resignasse ao trocadilho de ser apenas um “zero à esquerda”. Nada mais.
Depuração plausível
A reforma dos partidos pode até ser necessária, mas, nesse quadro, deixa de ser imperiosa. O governo vai tocando seus interesses no Congresso acima disso. Devagar, mais toca. E, o mais provável é que essa situação acabe promovendo, aos poucos, uma espécie de depuração de apoios. O número menor de aliados tende a exigir mais articulação. Mais jeito e menos força, voltado para o diálogo com a oposição, no que for possível. Evidentemente, projetos que requeiram três quintos dos votos (Emendas Constitucionais) ficam temporariamente descartados. Esqueçam-se reformas que não forem as pontuais. Ainda que se somem em avanços substanciais, não serão abruptas e nem radicais. É bastante plausível que o governo opte por propostas de maiorias simples ou quoruns menores. À parte do Congresso, cumpre também mostrar serviço em casa, elevando o que, na percepção de muitos, é o ainda baixo nível geral de eficiência do governo. Sem precisar contemplar todos os lados do PMDB, estabelecendo maior distanciamento de determinados setores do PT e delineando melhor as fidelidades com quem pode contar, a reforma ministerial pode assumir um feitio mais administrativo do que se esperava. Não que se afaste da lógica política, mas evidentemente, as circunstâncias podem permitir que essa lógica seja administrativa, sem deixar de ser eminentemente política.
Nisto tudo, parece haver ganhos evidentes nesta virada de metade de mandato. Primeiro, porque o sonho hegemônico do governo, de vitórias acachapantes, em se desfazendo, fortalece a democracia pela preservação da diversidade de uma sociedade plural – e nisso todos ganham; segundo, porque menos heterogênea, e mais voltada para resultados práticos, a equipe governamental pode resultar menos divergente na definição de políticas públicas, sociais e microeconômicas. De tal forma que neste momento, pouco resta ao presidente a não ser deixar a coisa mais ou menos como está, até porque a situação o favorece. Às vezes o melhor a fazer é mesmo fazer nada a não ser esperar que o quadro se defina naquilo que é possível definir: alinhamentos políticos intra-partidários, primeiro, e multipartidários depois; arrematando as maiores glebas de cada território, onde for possível. Trôpego em algumas áreas, ainda assim, o governo caminha. Não raramente, transparece não saber ao certo para onde. Mas caminha e até demonstra resultados econômicos e políticos, como têm revelado as votações, os índices e as pesquisas de popularidade. Deixando, antes, a vida o levar do que levando a vida, Lula vai repetindo a cantiga de seu filósofo favorito, Zeca Pagodinho, enquanto espera que os ônibus, bondes, kombis e vans (ilusões) se acomodem.
Carlos Alberto Furtado de Melo – Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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