A lei do talião e a ética da cizânia no país das instituições banguelas
Carlos Alberto Furtado de Melo
As sucessivas eleições para as mesas diretoras dos poderes legislativos – na Capital paulista, primeiro; na Câmara Federal, depois; e na Assembléia Legislativa de São Paulo, mais recentemente – mostram que a lógica eleitoral de 2006 precipitou-se e, agora, é a que dá mesmo o tom das disputas. E nessas disputas têm prevalecido dois sentimentos perversos: a cizânia e a vendeta. Primeiro, estimula-se o péssimo costume da traição política; depois o prejudicado se sente liberado para, agindo do mesmo modo, “dar o troco”. Nossos legisladores reinstituem, de certo modo, a antiga lei do talião, cujo pensamento pode ser resumido pela frase “olho por olho, dente por dente”. Os riscos são sabidos.
A primeira vítima é a própria noção de política, que requer disposição para ultrapassar diferenças, superar conflitos, encontrar consensos. Quando todos passam a desconfiar de todos – inclusive dos próprios correligionários – se estabeleceu a “ética da cizânia”. O paroxismo chegou ao ponto de esconder deputados, deixando-os incomunicáveis para que não fossem “convencidos” a mudar de idéia, como foi o caso da eleição da Assembléia paulista. Não se trata de julgamento moral (ainda que bem coubesse), mas, sobretudo, de reconhecer que podemos caminhar para um ponto de disfuncionalidade do sistema representativo e da capacidade dos parlamentos de negociarem conflitos vivos da sociedade. Perdidos nas disputas internas e caseiras, os parlamentares distanciam-se da sociedade, do debate programático e da construção de estratégias nacionais. Tornam-se, por outro lado, mais que autônomos, autistas; mais que um corpo legislativo, corporativistas; menos que homens públicos, advogados do interesse próprio.
A possibilidade da modernização do Estado e de desenvolvimento sustentável e continuado são as vítimas seguintes. Abandona-se a chamada “agenda positiva” e o município, o país e o estado ficam paralisados. O que, no mundo moderno, equivale mesmo a andar para trás. Note que o turbilhão se estabelece de tal forma que até mesmo a reordenação da casa depois do vendaval parece ser impossível. Tome-se o caso da reforma ministerial pretendida pelo governo Lula, por exemplo. Ao que parece, ela empaca não apenas pela dificuldade decisória atávica que o governo parece ter, mas, talvez – e, sobretudo –, pela inexistência de interlocutores e lideranças capazes de representar os conjuntos de parlamentares e as forças políticas vivas da sociedade. O desenvolvimento empaca, ou pelo menos não prospera na velocidade – nem diria ótima – razoável. Desse modo, as reformas do Estado, por si já difíceis, deixam de ser vislumbradas em anos para serem pensadas em décadas. A caminhada não é apenas lenta, é mórbida.
Esses horrores não devem assustar; isto é somente um artigo. Como dizia uma antiga canção, “a vida é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior” (Belchior). Não bastasse esse quadro, as “externalidades” possíveis de pressionar o ajuste desse sistema parecem tão distantes como descomprometidas com o processo. A sociedade, depois de vinte anos de democracia, mostra-se apática. Não para menos, se após tantas lutas o parlamento tornou-se uma espécie de “supositório do executivo”, como enigmaticamente disse o presidente Severino. Talvez tenha escrito certo por linhas tortas. Os deputados têm mesmo se entranhado nas debilidades do governo. Além disso, após a eleição do PT, a parcela mais mobilizada e mesmo barulhenta da sociedade se quedou atônita sem projetos, perplexa talvez, temerosa ou ciosa de seus espaços. Fato é que a grande política não tem mais mobilizado. Nas últimas semanas assistimos dois exemplos que poderiam ser exceções. O primeiro foi a gritaria – sobretudo da mídia – a respeito do possível aumento dos deputados. Mas o que parecia uma vitória de uma mobilização se fez espuma no aumento das verbas de gabinete. O segundo exemplo foi a mobilização em torno da aprovação da lei de bio-segurança e das pesquisas científicas com células tronco. Embora a vitória tenha sido memorável, ela foi fruto de uma mobilização ainda parcial, envolvendo setores ligados à comunidade científica e/ou os familiares dos portadores de doenças congênitas. O grosso da sociedade se não olhava indiferente, olhava blasé .
Outro setor da sociedade que tem perdido o viço e, paradoxalmente, a temperança parece ser o mercado financeiro. Passados os receios com o “enigma do PT” no governo, este setor que nos primeiros meses serviu de um elemento de forte pressão contentou-se com a falta de surpresas. Paralelo a isto, a exuberância dos “excessos de liquidez” internacional parece apontar todos os raciocínios para a tranqüilidade do curto prazo. Até que alguém grite fogo, vamos indo. Depois, é a arte de saber sair correndo à frente da manada. Na ditadura, dizia-se que a “vila militar” estava de olho* e isto servia como elemento de pressão aos governos militares. Em 2003 foi o mercado financeiro internacional que estava de olha na tal da “crise de credibilidade” e agiu, igualmente como um poder de pressão.
Conquistou-se a credibilidade – o que é alvissareiro –, mas parece que se perderam os olhos que espiavam (e expiavam) o novo governo, fazendo avançar o processo de reformas. No olho por olho, o governo perdeu o olho que olhava para transformação institucional. Ou pelo menos o faz, hoje, com olhar míope e cheio de cataratas. A sociedade tornou-se mais paciente e fechou os olhos. A visão de todos parece ter ficado, no mínimo, nublada como este verão. No dente por dente, o Brasil desvia-se do rumo e ninguém tem razão. O governo e oposição têm primado na arte de darem tiros nos próprios pés e assim o país caminha manco, devagar. Caminha devagar, caolho, manco e sem dentes, no país das instituições banguelas.
* Esta lembrança a tomo emprestada do economista Guilherme da Nóbrega.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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