O PT como problema e o lodo do quintal
Diante dos eventuais sucessos do governo Lula, alguns tucanos amargurados com a derrota em 2002 respondem ressentidos: “É, mas eles não têm o PT como oposição, como FHC teve”. Meia verdade. Todavia, fica a sugestão: quando rememorarem com saudade bucólica os acertos e sucessos de Fernando Henrique, sejam justos e pensem que a vantagem de FHC foi também não ter o PT no governo. É possível que neste gracejo resida uma dolorosa constatação para os petistas: o PT tem sido, ao longo do governo Lula, mais um tormento do que um porto seguro. Gostem ou não, isto é fato.
O atual quadro de paralisia e confusões políticas entre governo e Congresso resulta, em grande medida, dos desacertos do partido. Todavia, antes de relacionar e analisar as causas desse fenômeno cabe, por questão de justiça, considerar que a enorme desorganização e fragmentação do sistema partidário nacional também colaboram para esse quadro. À falta de interlocutores legítimos, críveis e fieis nos partidos, o governo acaba por se repartir em negociações múltiplas e infindáveis, onde, não raro, o acordo com este anula o entendimento com aquele . O PMDB é apenas um dos exemplos, mas esta multiplicidade de comandos, divisões e lideranças frágeis se alastram por todas as siglas partidárias. Solução – estamos todos cansados de saber – somente com uma profunda reforma política e partidária. Isto, no entanto, seria possível apenas sob a condução de uma força legítima e hegemônica que, por hora não existe. O PT e o governo acreditaram ser essa força, mas que a realidade tem provado que não são.
PT como problema: a lista é extensa, mas pode-se construí-la a considerando aspetos em que partido “ complica ”, “ impede ” e/ou “ suscita ”. Vamos a ela:
• À medida que está instigá-la, questioná-la e sugere mudanças, os petistas são os que mais atrapalham a condução da política econômica. O mais recente exemplo disto vem, aliás, de um membro do governo, ponta-de-lança do partido. O ministro José Dirceu, ao admitir no Programa Roda Viva que a política monetária “tem limites políticos”, prestou logicamente um desserviço à própria causa. Pode até ser que existam mesmo esses limites, mas é coisa que não se diz nem para a mãe, no almoço de domingo. Os efeitos, obviamente, são as dúvidas despertas dos agentes econômicos e a necessidade de o Banco Central estar continuamente reafirmando sua autonomia, elevando juros somente para provar que tem sim autonomia técnica;
• A consolidação de um governo de coalizão fica abalada em virtude da lógica (e da gana) da ocupação de espaços e cargos, na máquina, que, hipoteticamente, lhe trarão poder e benefícios eleitorais ao partido. Os petistas acreditam ser hegemônicos , o que obviamente não é. Apenas venceram uma eleição majoritária, não fazendo sequer maioria no parlamento. Para que de fato o fosse, o PT precisaria expressar tal influência na sociedade e no parlamento que, sua condução e dominação fossem naturais e inquestionáveis. Aceitas de modo quase espontâneo. Mas o ideal gramsciano (de Antônio Gramsci, o revolucionário italiano, principal formulador desse conceito de hegemonia), não se faz por expressão da vontade, mas pela construção da liderança na conquista de corações e mentes. Como estamos muito distantes disto, o PT não consegue nada além do que a antipatia no Congresso. O governo é levado a garantir a tal da “hegemonia” (entre aspas) por meios menos ortodoxos para um gramsciano e mais condizentes com o tradicional fisiologismo nacional;
• Igualmente se dá a confusão interna, na (in)definição de nomes e nas disputas de espaços entre os próprios petistas e suas correntes. A vitória de Severino Cavalcante, na Câmara dos Deputados, é apenas o exemplo mais eloqüente do tiro no pé que significa essa prática. O partido fraciona-se de uma forma pouco inteligente, agride-se, expõe suas entranhas e alimenta adversários. O caso de São Paulo, onde o senador Mercadante, o deputado João Paulo e a ex-prefeita Marta disputarão a indicação para concorrerem ao governo do estado tende a ser também mais um exemplo;
• Na formulação políticas governamentais (sobretudo no âmbito da microeconomia, mas também das políticas e programas sociais), o partido também compromete. Fracionado em “n” visões, delonga discussões ideológicas que paralisam a si e ao governo. É interessante notar que o pragmatismo praticado no atacado pelo “núcleo duro”, não se repete no varejo do cotidiano dos “assessores” e do segundo escalão;
• O purismo e a sanha normativa são igualmente nocivas, pois produzem cartilhas do “politicamente correto”, “conselhos e controles sociais e profissionais” e baboseiras do tipo. Enfim, tende a fazer o mais difícil e complexo, quando o mais fácil e simples é realmente o melhor. Acaba parindo uma turbulência besta e inútil, porém trabalhosa, pois cria marolas que fragilizam, quando há, a agenda positiva. O governo tem que provar que não é autoritário. Nesses casos, é apenas estúpido.
• Também seus interesses regionais complicam e impedem a formação da política de alianças de Lula para 2006. Ao relutar em abrir mão de projetos locais, o partido fecha portas para o entendimento com os demais aliados. Como a lógica política do presente já está vinculada à eleição, o governo não consegue sequer fazer a reforma de si mesmo (ministerial) e, portanto, consolidar a maioria parlamentar;
• Em resumo, esses elementos impedem a consolidação de um processo econômico vigoroso em que acertos macroeconômicos sejam complementados no plano micro, viabilizando um ciclo virtuoso, continuado e sustentável. Paralelamente, suscita as eternas dúvidas sobre “qual é o PT de verdade”, não eliminando a velha e surrada hipótese do “Plano B” e as incertezas sobre o que pode vir a ser o eventual “segundo mandato de Lula”, quando o presidente já não for candidato à sucessão de si mesmo. Que nova guerra e que batalhas serão travadas, a partir de 2007, na disputa por 2010?
Naturalmente, o Luiz Inácio da Silva tem grande parcela de responsabilidade nisso tudo. O presidente endurece o jogo em quatro paredes, pressiona ministros e dirigentes partidários, mas tem demonstrado inusual lentidão em seu processo decisório. E ainda assim não tem sido raro que Lula decida por nada decidir. Ora, no sistema presidencialista, a caneta (que nomeia) e o murro na mesa (que diz basta) pertencem ao presidente. Além do mais, Lula é a única alternativa real de poder para os petistas, ou pelo menos para parte deles. No mínimo, será o grande puxador de votos para as bancadas legislativas do partido. Poderia se dar ao luxo da prima-donna e insistir em cantar apenas sob determinadas condições.
É verdade que a situação do PT também é pouco confortável: venceu uma eleição e não governa com seu programa (até porque não tem); a hegemonia esperada lhe escapa por entre os dedos; muitos de seus parlamentares (não todos, é claro) se vêem constrangidos a defender hoje o que maldiziam ontem, às vezes, sem sequer entender porque afinal estão fazendo aquilo. Viciados com os hábitos do passado, ainda sentem vertigens com a medicação prescrita no presente. Além disso, o que parece mais cruel, ao contrário de 2002, a campanha de 2006 exigirá que o partido abra mão muitos de seus projetos regionais em nome do governo central. Se ganharem, já perceberam, ganharão pouco: um governo que não conseguem controlar e que será partilhado com aliados, com os quais não caminham a vontade pelas ruas. Se perderem, perdem tudo: o pouco do governo central que têm por direito, os projetos regionais, o eleitorado dos estados e até as estruturas partidárias. Eis o problema. Equação difícil de resolver.
Pra não dizer que não falei do lodo
O quadro político começa a esquentar novamente e obriga a menção escândalos e casos polícias que alguns analistas já identificam como incipientes sinais de crise institucional. O ex-presidente Fernando Henrique – um pouco por jogo político, um pouco preocupação genuína – foi uma voz que ecoou nesse sentido. Enfim, a lista é vasta. Podemos mencionar desde o caso Waldomiro Diniz até o nepotismo militante de Severino Cavalcante. Há os casos que envolvem o ministro Romero Jucá, o presidente do Bacen, Henrique Meirelles, o deputado Roberto Jefferson, os poderes Legislativo e Executivo de Rondônia e o casal Garotinho, no Rio de Janeiro (se é que não se esqueceu de nenhum outro). Há pouco, um deputado do Rio, André Luiz, foi, inclusive, cassado. Trata-se de uma espécie de lodo produzido pelo sistema. A princípio, ninguém liga, mas rapidamente o quintal da política estará cheio, impedindo o fluxo normal das pessoas, causando escorregões e escoriações mais sérias.
Juntem-se a esses casos, as costumeiras manifestações do MST, repletas de som e fúria, e já tradicional crise do sistema de segurança pública em todo país, o desrespeito explícito ou discreto, aqui e acolá, da Lei de Responsabilidade fiscal e o caldo de cultura estará dado para que se questione o sistema político e o regime democrático de modo mais veemente. Assim, na avaliação do cidadão comum, “os políticos” não despertam confiança, são corrompidos e, pior, ineficientes: é a inauguração do modelo “rouba e não faz”. O pior com o menos. Intolerável. O cidadão fica no perde-perde, uma espécie de “péssimo de pareto”. Os confrontos de rua já começaram (RO). Sem a intenção de ser caustico, são brisas que podem fazer lembrar a Argentina de De La Rua.
A oposição, é claro, se precipita e começa a identificar Lula com João Goulart (como a lembrança de De La Rua também é). Um exagero politicamente arquitetado. Alguns elementos servem para amenizar a fúria e a revolta potenciais: bom andamento da economia, o relativo aumento dos níveis de emprego e certa febre consumista, em virtude do crédito consignado, são, neste momento, válvulas de escape e diferenciam este momento dos exemplos do passado. No entanto, se a economia claudicar, num cenário como este, a coisa pode ficar séria pra valer. Não faltam oportunistas para jogar gasolina nesse fogo. Os comerciais de TV do PDT de São Paulo, com “Paulinho da Força” à frente, já procuram identificar o governo Lula com o governo militar.
Dos casos acima mencionados, vale a pena uma palavra em especial sobre Henrique Meirelles e outra sobre a eventual “CPI dos Correios” (caso Roberto Jefferson). No primeiro caso, é possível (quase provável) que Meirelles saia “limpo” do processo do STF. Isto lhe permitiria deixar o Banco Central para se candidatar ao governo de Goiás como o ”milionário mais honesto do Brasil”. Uma flor que brotou desse lodo e se diferenciou dele. Nesse quadro, seria uma saída honrosa para Meirelles e pouco traumática para o governo. O “desenlace amigável” de uma relação que já começa a dar sinais de esgotamento.
Já a eventual “CPI dos Correios” (será apenas dos Correios?), pode ser um elemento a mais na conturbação toda que foi acima apontada. Ampliada para outras estatais, pode sair do controle político e aguçar ainda mais esse sentimento de descrédito e revolta que pulula pelo país, mas que ainda não deu sinais de que atingirá pessoalmente o presidente Lula. Todavia, o grosso da população não compreende as filigranas do sistema político e a tudo chama, incorretamente, de “governo”. Lula pode ser atingido, menos por envolvimento direto do que por contaminação, atingindo a economia e, por decorrência, todo o sistema político: uma crise de verdade. Todavia, um risco real que tende, por si só, a servir de freio, um fator de moderação. Dar conseqüência a esse raciocínio parece ser pessimismo demasiado e por isso é bom parar por aqui. Enfatizo: é um cenário pouco provável, mas, afinal, trata-se de política e não deve ser desconsiderado.
“E qualquer desatenção, faça não! Pode ser a gota d'água”.
Carlos Alberto Furtado de Melo , cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Político do Ibmec São Paulo.

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