Ânimo flutuante
Carlos Alberto Furtado de Melo
Soubessem que "não há bem que dura para sempre", os governos não comemorariam tanto "os males que acabam". Aos poucos, o Brasil constrói um clássico de imprevidência política. São parceiros do governo, a sociedade e os agentes econômicos que, por marasmo (sociedade) ou por euforia precipitada (mercado) deixaram de pressionar o sistema político. O momento mundial e os bons ventos da economia brasileira não foram aproveitados. É verdade, o jogo ainda está no começo e os resultados divulgados na semana passada, isoladamente, não querem dizer nada. Mas, parafraseando o ministro Antônio Palocci, o diabo é que o ânimo político, assim como o câmbio, flutua.
Os recentes números são negativos para o governo. O discurso oficial e a promessa de surpresa fazem a sua parte. As ênfases do presidente são naturalmente retumbantes, mas não há wishful thinking que consiga negar que o viés agora é de baixa. A pressão sobre a equipe econômica, sobretudo, o Banco Central, tende, assim, a aumentar. Para uma das avaliações presentes, os juros tanto exigiram que levaram os anéis (a inflação) e, junto com eles, os dedos (a popularidade do presidente) e as jóias da coroa (a perspectiva de crescimento). Ser ou não ser um freio de arrumação, como disse o ministro, não é a questão. Importa que a política econômica mostrou-se vulnerável num momento que deveria ser o arrimo de um governo enrolado em si mesmo.
Há uma penca de problemas: a relação com partido, o PT; a titularidade da coordenação política e a coordenação política na base; a base fluida e inorgânica, montada sob o frágil castelo do sistema partidário; a debilidade das ações administrativas e da comunicação do governo; a sangria das denúncias de corrupção, que ferem o PT como a nenhum outro partido; o cansaço da classe média urbana, vocalizado pela mídia. Só a economia andava mais ou menos satisfatória. Mas a política adora paradoxos: a economia, até aqui esteio de tudo, pode se tornar responsável por tudo e pagar os patos. Vozes antes distantes são cada vez menos dissonantes e confluem para as mesmas críticas: o câmbio, os juros, o superávit primário. Há ponderações sinceras e plausíveis, mas o momento também abre espaço para toda sorte de interesses. Fale o que quiser o ministro, sua política está novamente vulnerável.
O presidente Lula gosta de analogias. Esta é simples: numa família em que apenas o "Pai" trabalhava, mulher, filhos, sogra, cunhados consumiam a renda e se desentendiam no jantar. O sujeito que os carregava nas costas foi atingido pelo desemprego. Todos precisarão contribuir de algum modo, mas o sentimento reinante é que "a casa caiu" porque "aquele 'irresponsável' perdeu o emprego". O provedor agora é bode expiatório e purga todos os pecados. A vida é assim, a política também.
A necessidade de aprofundamento das reformas é notória: o Estado brasileiro é desorganizado e a situação fiscal é caótica; a sociedade não suporta e nem admite mais impostos; a infra-estrutura é em si um gargalo para o desenvolvimento; a volta da inflação é um fantasma. Mas o que se fez desde final de 2003? Ano passado, algumas medidas referentes ao crédito (Lei das Falências) e ao investimento (as Parcerias Público-Privadas) foram aprovadas. Ainda assim, quase nada saiu do papel. Neste ano, não bastasse inédita derrota na Câmara, elegeu-se um espécime como Severino Cavalcante (se quisessem, fracassariam). Assim, a pauta, quando andou, foi para constranger.
O governo fez ouvidos moucos. Enquanto os índices garantiram a festa, todos se refestelaram. Agora, tal o pai de família, a área econômica pode ser responsabilizada. Primeiro, pela maior contestação e cobrança de resultados mais rápidos. Conforme O Estado de S. Paulo, Lula teria questionado Palocci: "E aí, quando caem os juros?". Sabe-se lá, companheiro! A pergunta não condiz com a decantada autonomia operacional do BC. Por essas e outras, ao longo desses meses, a "autoridade monetária" teve que reafirmar a supremacia da "boa" teoria econômica em relação ao sistema político. Chegou-se ao paroxismo, sem perceber que isto não comporta liberdade total e nem tolerância ao erro. Independente do cabimento das críticas, o importante é que o momento político dá vitalidade àqueles que atacavam pedras. Bem ou mal, a política existe, pressiona e age. Não se pode desconsiderá-la.
Em segundo lugar, o natural temor do mercado pode, por fim, contribuir para a mudança abrupta dos ventos. O medo, inibindo investimentos e piorando a economia no geral, involuntariamente, radicaliza as críticas. A profecia se realiza. Deve-se lembrar que as eleições se aproximam e os candidatos mais ansiosos tendem a, estrategicamente, se descolar do discurso oficial. A impaciência, freqüentadora contumaz dos palácios de governo, é má conselheira. Além disso, o ambiente pouco contribui para a implantação de uma agenda positiva. As notícias de corrupção agitam a cena e dão fôlego à sanha de CPIs e a chantagem política. Esta última dá vigor ao moralismo crítico, que agita a política e esta a economia. Se o governo descuidar pode se ver, de verdade, num redemoinho político-econômico. Dessa forma, os próximos dias podem ser pródigos em declarações desencontradas e desastradas que tragam mais desencontro.
Por outro lado, é possível que se tenha chegado ao fundo do poço, permitindo ao governo colocar os pés no chão, finalmente. Barrar a CPI passou a ser importante mesmo, até porque o esforço contribuirá para a rearticulação da base. Depois, seria fundamental retomar a pauta parlamentar - se possível por meio da reforma ministerial que, afinal, ficou encruada - e, dessa forma, sinalizar para um segundo semestre de controle político da base e aprovação de reformas importantes, como a Tributária. Em paralelo, parece fundamental apaziguar o PT. Deixar para 2006 os ajustes que muitos querem fazer agora, no processo de eleição interna. Estes seriam sinais positivos. Será possível? Não se sabe. No Brasil, às vezes o fundo do poço é falso.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Cientista Político, Doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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