A estupidez prática e o inesperado como "variável permanente"
Carlos Alberto Furtado de Melo
Necessário dizer que os acusados têm amplo direito à defesa, mas - diante da tradição brasileira e do sistema permeável a malandragens dessa natureza - acreditar no "mensalão" é relativamente fácil. Difícil é compreender seres racionais se metendo nisso. Se for real, o "malandro" será o maior "otário" da história: pagou por aquilo que não precisaria comprar. Independente de considerações éticas, tenha o nome que tiver - "participação", "liberações de verba", "mensalão" - o fisiologismo deveria ser, em tese, instrumento de adesão aos governos, não o contrário. Mas do final de 2003 para cá, o Executivo pouco obteve do Congresso; a agenda ficou paralisada; aprovou-se apenas aquilo que possuía algum nível de consenso na oposição. Se realmente existiu, o "mensalão" foi, sobretudo, uma estupidez prática.
Se recebeu alguma maldição, Lula também herdou de FHC a única agenda que até aqui implementou. O governo parou e não foi capaz de retirar a base do imobilismo e do atraso. É possível que, contente com o mito formado em torno de si, o presidente, ao invés de assumir a condução do processo, tenha se acomodado. O fato é que não soube evitar digressões lógicas de seus ministros, não se exigiu "postura de governo" de seu partido e nem buscou envolver a sociedade - acima dos particularismos de grupos - num processo virtuoso. Fizesse Política, tão mais desnecessário seria o "mensalão". Se realmente existiu, a mesada passará à história também como um retumbante exemplo de gasto ineficiente.
Faltou comando e sobrou rendição à perversidade do sistema político. Nitidamente, houve um vazio de liderança e de clareza do caminho a seguir. Perdemos tempo e é desnecessário perguntar se a presente crise afetará a economia. Já afetou por aquilo que se deixou de fazer e aproveitar: aprofundamento das reformas, modernização pelo implemento em infra-estrutura, ordenação microeconômica e definição clara de marcos regulatórios. Até aqui, a necessária reforma do Estado e as distorções do pacto federativo não foram sequer resvaladas. É possível que os freios desse processo seja o limite da (respeitabilíssima) história pessoal do presidente e da fragmentação de seu partido; da incapacidade geral de formulação, do ocaso de lideranças no país e da inaptidão para compreender um mundo repleto de escassez e novidade que está muito além do discurso romântico da esquerda romântica de uma utopia romântica e melancólica.
Não são desprezíveis os sinais de que, depois de notório enfraquecimento do PT, a situação possa convergir para acomodação. O governo pode se reorganizar, livrando-se de alguns pesos, jogando corpos ao mar, diminuindo o número de ministérios e descolando sua imagem das "trapalhadas" do "tesoureiro" e do PT. As perspectivas de reeleição, no entanto, neste momento, pelo menos, empalideceram e não devem robustecer tão cedo. Isto interessa à oposição e estariam dentro dos objetivos e limites considerados seguros em relação ao imponderável surgimento de outsideres e populistas. Este seria o melhor cenário de médio e curto prazo: o governo não estaria morto, apenas sarneyzado, confiando na possibilidade de recuperação por meio da economia. Mas nem disso há certeza. O certo é o inesperado como "variável permanente". CPI gera Cpi, denúncia gera denúncia, agressão gera vingança, paralisia gera letargia. A frase "saiu do controle" tem se tornado lugar-comum. Indica a política como terreno fértil à proliferação de aproveitadores de todo tipo e de bem-intencionados-desavisados, com nitroglicerina nas mãos. Qualquer desatenção, o pacto político se dissolve e não há como recompô-lo rapidamente. Nos últimos meses, essas figuras têm se multiplicado. Há uma explicação clássica para isto: faltam lideranças, em todos os níveis, e não há instrumentos que estabeleçam outros tipos de equilíbrio.
Em 2003, a economia claudicava, mas a política - aliada à balança comercial e ao bom ambiente externo -- deu suporte à economia. Surpresos, agentes econômicos voltaram a investir. Em 2004, houve o inverso: a política começou a patinar, mas a economia, em alta, segurou a onda. Elevou a popularidade do governo e minimizou o risco. Agora, em colapso, a política não poderá mais contar com o suporte da economia porque ela também perdeu viço. A política possui propensão para as soluções rápidas e não admirará se exigir resultados econômicos imediatos. Todavia, além da improbabilidade de resultados rápidos, será a economia que, de fato, requererá da política uma sensível elevação de eficiência e sacrifícios: reformas e ajustes que os políticos não parecem mais dispostos a tolerar. A tensão entre ambas poderá se configurar como o pano de fundo da crise. O país carecerá de navegadores experientes para conduzir o barco ao mar aberto, evitando recifes e bancos de areia. Lula permitirá a Palocci continuar controlando o leme? Talvez sim, por falta de alternativa.
No que tange à reforma política, o presidente acertou no que viu, mas deveria ter mirado naquilo que não enxergou, por opaco. Não há panacéia e nem a situação permite medidas superficiais ou de eficácia duvidosa, limitadas ao "financiamento público de campanha", à "cláusula de barreira", ou à "fidelidade partidária". Podem ser as mais consensuais, porém de efeito limitado. O país carece, na verdade, de medidas que levem à reordenação dos partidos, diminuindo a heterogeneidade e a autofagia interna, agrupando conjuntos similares hoje dispersos pelas mais diversas legendas. As perspectivas nessa direção, não são, no entanto, nada otimistas. O ministro Márcio Thomaz Bastos não pode fazer milagres e, no limite, quem decidirá o teor da reforma, se houver, serão os próprios parlamentares, beneficiados pelo atual sistema. Para solução dessa crise, não há neste momento melhor remédio que a moderação - algo que não está presente nem na ultra-esquerda e nem no PFL. Não se trata, ainda, de uma crise institucional de verdade, mas a situação exigirá do presidente Lula - e mesmo de ex-presidentes e lideranças políticas - um nível muito maior de iniciativa e de disposição para superar interesses estaduais, divergências e vaidades; artigos em falta no momento.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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