Caixinha de surpresas
Carlos Alberto Furtado de Melo
O trabalho é de Sísifo: um eterno recomeçar. Instituições que avançam, param e retrocedem quase ao ponto de partida. Fala-se de dissociação (aparente) entre política e economia. Enquanto a primeira não contaminar a segunda, segue-se de costas para o Brasil sem se aperceber que não avançar também é perda. O gradualismo é mórbido e o denuncismo a tônica que aprofunda a crise do Partido dos Trabalhadores consigo mesmo e com seus aliados. Não raro, o PT tem sido chamado a dar explicações para fatos os mais desencontrados e inexplicáveis. Qual a canção de Cazuza, seus heróis também morrem da overdose do realismo político; enquanto há grupos que querem uma ideologia para viver. O Brasil se enreda nos conflitos relacionados ao Estado. A crise que atinge, por enquanto, pelo menos dois dos três poderes e a ausência de lideranças capazes de reordenar o sistema e apontar novos rumos traz uma enorme volatilidade. Por definição, a volatilidade não permite raciocínios lineares e, assim como o futebol, também a política se transforma numa "caixinha de surpresas".
Se a linearidade é impossível, há cenários para todas as ansiedades. Dos mais otimistas aos mais catastrofistas, pergunta-se onde isso vai dar. Quem saberá? O certo é que neste momento, Lula e o mercado (seu aliado acidental) trabalham pelo menor prejuízo. Há quem acredite no "golpe de mestre" do presidente "liberto" do PT, implementando agenda fiscal vigorosa capaz de desarrolhar o processo econômico. Mas também há profetas do caos. Compara-se Lula a Fernando Collor, como se a história, que já foi farsa, se repetisse agora como tragédia. Por vários motivos, Lula não é Collor e nem parece que o governo do PT tenha aberto tantas frentes de desgaste como o "caçador de marajás". Todavia, se a linearidade é impossível, cumpre indagar cenários possíveis; discutir outros menos prováveis que rondam o país como o espectro de uma ópera bufa.
Cenário de Lulização - O presidente reinventa seu governo e, finalmente, começa a governar. Consegue atrair parte considerável do PMDB; o PT sai abalado somente ao ponto de permitir maior mobilidade ao presidente para reorganizar o governo. O presidente se impõe ao partido. Nos acordos para a recomposição ministerial, reordena o conjunto dos aliados, livra-se de alguns parceiros pouco convenientes e consegue preservar a política econômica do ministro Palocci. Por meio da ministra Dilma, definem-se prioridades e obtém-se a gerência efetiva dos projetos; a economia corresponde e o país volta a crescer. A força centrípeta do governo facilita alianças para 2006 e Lula volta ao patamar do "candidato imbatível" de há poucos meses. O sistema político passa por mudança pontuais que poderão ou não se aprofundar somente no próximo mandato presidencial.
Problemas com este cenário: a) a precária coesão do PMDB; b) a voracidade fisiológica do sistema político - é preciso alimentá-lo na medida certa: se lhe dá pouco, ele paralisa; se lhe der muito, ele quer ainda mais; c) considerada a natureza dos atuais escândalos, a impossibilidade do uso contínuo do fisiologismo; d) a ausência de lideranças parlamentares; e) ausência de liderança no PT, assim como a heterogeneidade, a radicalização discursiva e o processo de eleição direta no partido; e) a pequena probabilidade de a economia apresentar resultados significativos imediatos.
Cenário de Sarneyzação parcial - Denúncias atingem a cúpula do PT e lideranças do governo, sem atingir o presidente da República. Ainda assim, Lula desgastado não consegue impor pactos no interior do governo. A aliança com o PMDB custará reparos (ainda que pequenos) à política econômica recrudescendo o discurso "desenvolvimentista". O PT mantém a unidade por meio de um pacto interno de centro-esquerda; os "moderados" lançariam mão do "discurso radical como instrumentos de contenção" dos radicais de verdade e os movimentos sociais. Antônio Palocci e a política econômica são mantidos, para evitar mal maior. As hostilidades a Palocci serão, todavia, permanentes. Os investidores ficam cautelosos, a recuperação econômica se dá em ritmo mais lento, ainda que seguro. Haveria pouca ou nenhuma atividade no parlamento. As CPIs funcionariam como um torniquete para a popularidade do presidente. Lula, "monitorado" pela oposição e por ex-aliados no Congresso, consideraria a possibilidade de não concorrer à reeleição. A alternativa política estaria com os tucanos e aliados. Mudanças pontuais no sistema político.
Problemas com este cenário: Também as disputas entre os tucanos e seus eventuais aliados também floresceriam. O discurso populista teria restrita, porém maior, receptividade que a atual, pressionando a economia em 2006. O "monitoramento" requer tensão e aguça o denuncismo. Novas denúncias poderiam progredir para um cenário ainda mais incerto e com alguma probabilidade de perda total de controle. A pressão social do "discurso radical de contenção" poderia ocasionar algum nível de tensão nas ruas. A "ordem", para ser mantida, requereria do braço forte do Estado. Dada a biografia do presidente, esta ação seria extremamente controversa, hesitante, com enorme possibilidade de fracasso.
Cenário de Itamarização - Denúncias destroçam o PT, que racha. Lula é preservado, mas também "emparedado" pelos partidos e pelos movimentos sociais. A crise política começa a atingir a economia, colocando em risco a estabilidade, o equilíbrio fiscal e mesmo os contratos. Os agentes econômicos se assustam e a crise passa a ser econômica também. Dispositivos políticos voltados ao equilíbrio passam a operar. Políticos e sociedade buscam soluções por meio de um novo pacto e do estabelecimento de um governo de "salvação nacional". A chamada ao "bom senso" impõe profunda rediscussão sobre o sistema político. Os grandes partidos, por heterogêneos, não encontram coesão e se dividem entre uma ética da responsabilidade (salvar o país) e um ética da oportunidade política (o ganho eleitoral de curto prazo). Outros tipos de divisão florescem nas siglas partidárias. Uma reordenação partidária, por fim, passa a ser possível, aproximando setores políticos similares. Os "modernos" e os "arcaicos" tenderiam a buscar nichos mais homogêneos.
Problemas com este cenário: Pouco interesse de partidos hoje na oposição em lançar bóias salva-vidas ao governo. Ausência de limites para a crise econômica. Ausência de lideranças capazes de viabilizar politicamente o governo de "salvação" e a reordenação partidária. Intensidade da crise pode favorecer o discurso "salvacionista" populista.
Desses três primeiros cenários, talvez o primeiro e o segundo tenham maior plausibilidade diante do quadro que se tem no momento. Ainda assim, a recuperação plena do governo requereria tal qualidade de articulação política e tamanho vigor econômico que apostar as fichas nesse cenário pareceria, hoje, pouco lógico. A Sarneyzação, com todos os seus riscos, talvez se revele numa possibilidade mais consistente. Uma outra hipótese plausível seria uma síntese entre os dois cenários: Lula segue em frente com alguma força, mas, ainda assim, "monitorado" pelas circunstâncias políticas. Poderíamos chamar este cenário de "sarneyzação política, com relativo virtuosismo econômico". Lula se recupera, mas não muito. O jogo empata e somente se resolverá na final, de 2006. É viver para ver.
Outros Cenários
Há corações e mentes que acalentam outros cenários, mais complexos e, por que não, tenebrosos. Vistos com olhos de hoje, eles têm pouca ou nenhuma viabilidade. O rigor analítico, no entanto, exige considerá-los. Passam pela cabeça de incontáveis malucos, pressionam discursos e artigos de opinião, aterrorizam nas manchetes mais sensacionalistas. Constituem sonhos e interesses. Pode-se, portanto, especular em torno de mais duas hipóteses.
Cenário da "chavenização sem petróleo" - Com o aprofundamento das denúncias, o discurso reativo do "golpismo das elites" também se aprofunda. Confusões e agressões, no Parlamento, se sucedem, fazendo com que o Congresso perca a condição de palco do conflito. Lula assume uma liderança reativa. Os movimentos sociais vão às ruas à procura de saldar a dívida social secular do país ainda neste governo. Os conflitos se estabelecem na sociedade de forma autoritária e com algum grau de violência. O mercado se apavora; o país passa por um ataque especulativo, seguido de fuga de capitais. O "povo" é conclamado de um lado e do outro. A classe média também vai às ruas.
Problemas com este cenário: Como o próprio nome diz, faltaria suporte econômico para sua viabilidade. O Estado brasileiro não possui, além da enorme carga tributária que arrecada, condições econômicas de se manter sob tamanha tensão. Não há, no Brasil, monopólio estatal capaz fornecer as garantias que Hugo Chávez desfruta hoje na Venezuela. Para este cenário, não parece haver qualquer viabilidade econômica e muito menos prática. Além disso, esse tipo de radicalização careceria de uma força hegemônica cultural e com capacidade de ampla mobilização, o que não se encontra atualmente no Brasil. De mais a mais, a tradição conciliadora da política brasileira tende a agir como um freio natural para a progressão do radicalismo político.
Cenário "Collor redivivo" - O presidente Lula é atingido pelas denúncias e é levado a renúncia. O vice-presidente, José de Alencar assume. O PT se fragmenta, praticamente se esfacela. Não haverá vácuo, mas um "oco" em que o discurso "desenvolvimentista", que ficou no passado, tenta romanticamente se viabilizar. Por inconsistente, o discurso de Alencar cai no vazio. A economia regride e, por fim, paralisa. A degradação de índices e fundamentos econômicos refreia o ímpeto presidencial. Somente novas eleições (antecipadas ou não) poderão reconduzir o processo. A adoção do sistema parlamentarista seria considerada. Como esse "oco" não é vácuo, novas lideranças buscariam se viabilizar. Poderiam surgir novos aventureiros e ou uma tentativa de reordenação política a partir de um centro conservador e autoritário.
Problemas com este cenário: Lula não é Collor e nem está desgastado simultaneamente em várias frentes quanto esteve o ex-presidente. José de Alencar também não estaria de olho no "cavalo encilhado", como foi o caso de Itamar Franco. A financeirização da economia dá pouco espaço de manobra para políticas econômicas pouco ortodoxas. Além disso, a queda de Lula não parece interessar ao sistema político, pois alteraria as regras do jogo e mesmo as chances dos atuais postulantes ao poder. Pelo menos para parcela dos meios de comunicação, a sanha denuncista tende à moderação a partir de um determinado limite.
Difícil acreditar na viabilidade destes cenários, embora haja correspondência entre eles e a ação política de alguns setores organizados. Assim como o torcedor do mais humilde clube acredita que seu time será campeão, há quem acredite na sua viabilidade. As metáforas do futebol - nos ensinou o presidente Lula - em alguns casos são úteis. Como um corintiano, pode-se acreditar no sucesso da MSI ou, pelo menos, torcer para que o adversário não prospere: que Palmeiras, São Paulo e Santos, por exemplo, não tenham maior sorte. Futebol é caixinha de surpresas, mas o jogo só termina quando o juiz apita. Na política, o governo tomou alguns gols e fez outros tantos contra. Poderá virar o jogo? Ao que tudo indica o empate ainda é possível, além do mais provável. E tende ser um ótimo resultado. Se vier a vencer - por um a zero, que seja - os lulistas poderão comemorar como se fosse goleada.
Carlos Alberto Furtado de Melo - Cientista Político, Doutor pela PUC-SP, Professor de sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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