Sobre sonhos e metamorfoses
Carlos Alberto Furtado de Melo
Assim como Gregor Samsa – personagem de Franz Kafka – acordou de sonhos aterrorizantes e percebeu que havia se transformado numa barata, também o ambiente político se transformou de modo assustador. Apontar erros ex-post é fácil. Difícil é prever o risco; agir sem se acovardar; fazer o que deve ser feito. José Dirceu de Oliveira e Silva, excessiva e perigosamente poderoso, não antecipou seus riscos. Foi imprevidente ao se atirar com tanto ímpeto contra a oposição e ao se portar como uma espécie de primeiro ministro. Se por um lado a “tarja de capitão do time” caiu-lhe como um estigma; por outro, a importância do cargo lhe exigia moderação e discrição que não teve. Também caberia maior apuro com suas relações políticas, cujo apenas um dos exemplos é o hoje distante Waldomiro Diniz. Agiu como se ainda fosse deputado de oposição e presidente do PT, aonde sua liberdade foi sempre dilatada. Na condução política do governo, ergueu um castelo frágil porque o cimento dos acordos continuou sendo a areia das relações fisiológicas, tenham elas o nome que tiverem. O excesso de realismo levou ao abandono da bandeira de transformações políticas que o PT empunhava. No governo, a tarefa é mais complexa, os interesses infinitamente mais conflituosos, a dinâmica menos permeável a erros e distrações; as relações políticas exigem, antes, jeito e sutileza do que intolerância e combatividade. A hegemonia que buscava carecia de agenda clara e modernizante, algo que não foi capaz de implementar. Sua disputa com Palocci, um capítulo à parte.
Independente da veracidade das denúncias que os atingem, como Dirceu erraram também Lula e o PT. Faltaram-lhes projeto e capacidade de condução política; o horizonte utópico de ambos se reduziu ao projeto de poder político-eleitoral. Despertam, agora, para o pesadelo: Dirceu sonhou Bismarck e acordou Rasputin; Lula sonhou Mandela, acordou Lech Walesa; o PT sonhou o Labor Party e acordou PTB, na prática de alguns de seus dirigentes. A sociedade ansiava a modernidade, mas foi sacudida por relações tão fisiológicas quanto tradicionais. Há tempos, o país sonha um paraíso tropical e acorda atemorizado por um Abominável Homem das Neves qualquer. O da vez chama-se Roberto Jefferson: de uma pequena bola de neve – de R$ 3.000,00 –, delineou a avalanche. O inverno está menos no clima que na atmosfera. O sentimento de que “tudo pode acontecer a qualquer momento” angustia. Nesta hora, são poucos os algozes, e muitas as vítimas. Reputações ruem; biografias se desfazem. Até que as coisas fiquem claras e se saiba quem é quem, muito pranto rolou e muito constrangimento doeu. Uma militante do PT disse que, por sua vontade, só sairia à rua de burca. Uma geração que conheceu a ditadura, a tortura, a morte de companheiros e a clandestinidade se pergunta que diabos fizeram de seus sonhos e o que eles próprios fizeram com suas vidas. Lutar! Pois é, prá quê?
Em se tratando da política nacional, a boa-fé é má conselheira. Os inocentes são os primeiros a sentir o bafo da desgraça. José Genoíno – sabem os que o conhecem de perto – é um homem honrado que vive com dinheiro contado, numa vida simples. Ao que tudo indica, se viu enredado num esquema lancinante. Seus erros: acreditar que lidava com anjos; não duvidar; não dar ouvidos aos cépticos; não expor “companheiros” de modo que julgava precipitado. Agora, “na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir”. Seu elevado prestígio nunca correspondeu a poder no PT – apenas 5% dos votos do Diretório. Figura pública reconhecida, parlamentar respeitado, mas sem mandato, foi feito presidente no momento de esvaziamento do partido por conta da eleição de Lula. Foi escolhido um pouco como prêmio de consolação; em grande medida por seus méritos de conciliador político; um pouco porque as alternativas eram infinitamente menores. Sem o controle da máquina partidária, não chegou a ser presidente de fato, mas se viu no dever de defender a legenda e dar explicações que não tinha. Confiando no tesoureiro – é de sua índole –, foi como se tomasse uma tesourada nas costas. Sonhou Ulisses Guimarães e acordou Ibsen Pinheiro.
Como se tem dito repetidas vezes, o pior desta crise é a sua imprevisibilidade. Tudo pode se transformar num átimo de segundo porque não há controle. Os boatos são quase todos catastróficos e nunca se sabe o quanto há de verdade ou de maledicência nas opiniões. Ulisses Guimarães dizia que não se deve brigar com “sua majestade o fato”. Objetivamente, alguns boatos sonharam versões e já se transformaram em evidências. Na crise, o incerto é a coisa mais certa de todas as coisas e os nossos desejos não valem um caminho sob o sol. De concreto, pode-se afirmar apenas que o sistema político, legado pela redemocratização, já não cumpre papel algum a não ser o de cartório de interesses difusos e pouco transparentes, assim como não há no horizonte de curto prazo perspectiva de transformá-lo significativamente. A presente insegurança deriva, obviamente, da escassez de lideranças capazes de conduzir a bom termo um processo complicado como este. As raras vozes do bom senso normalmente são ignoradas por quem tem a prerrogativa da iniciativa política. No mais, vive-se uma fase de transição, onde o velho morreu (ou está morrendo), mas o novo ainda não nasceu. A tendência é que sangre até se esvair, parindo, talvez, uma outra ordem, um novo sistema, uma “nova nova república”. O remédio consiste em acreditar numa destruição criativa.
Por enquanto, tocaremos o barco com lideranças claudicantes carentes de carisma e ascendência sobre mais amplos setores, incapazes de repactuar contratos e de falar a corações e mentes; sem disposição para estabelecer tréguas, nem autoridade para arbitrar ganhos e perdas. Na concepção de Max Weber, eminente sociólogo alemão da transição dos séculos XIX e XX, além do carisma, a dominação pode se fazer legítima também pela tradição ou por uma relação racional, burocrática e legal entre o cidadão e a ordem estabelecida. Mas no Brasil, nossa tradição nos leva de volta a lugar algum e não serve; a racionalidade das instituições é ainda adolescente. A verdade é que falta um Didi. Não me refiro ao trapalhão – deste tipo há aos montes –, mas ao craque que em 1958 foi ao fundo das redes, pegou a bola, colocou-a debaixo do braço e caminhou lentamente ao meio-de-campo, reorganizando o time. O resultado, Brasil campeão: 5 x 2 sobre a Suécia. Tancredo Neves, Luís Carlos Prestes (depois de 1950), o Marechal Lott, Teotônio Vilela, Thales Ramalho, Petrônio Portela, Mário Covas, o mais uma vez mencionado Ulisses Guimarães e até o controverso Golbery do Couto e Silva fazem falta. Há incendiários em demasia e bombeiros de menos. Assim como não se apaga fogo com gasolina, não se abrandam crises com festivais de CPI e nem com bravatas.
Mas, afinal, o que fazer? A esquerda espera resposta a esta pergunta desde Lênin. O primeiro passo, creio, será não se iludir: o sujeito gordinho, vermelho e de barbas brancas, não é Papai Noel. É um presidente desgastado e sem possibilidades de distribuir presentes. Na reforma do ministério não terá grande margem para distribuir orçamentos polpudos e nem permitir gastos excessivos. O pior: tudo indica mais do mesmo, agora na versão Renan e Sarney. Na situação em que vive, Lula vê as renas fugirem, os lobos uivarem, os ursos hibernarem e os rios congelando. Está numa fria. Precisará de habilidade para costurar pactos e acordos; criatividade e muito boa-vontade de todos para fazer valer a luz do sol, além de sorte as pencas. Para isso, precisaria exprimir a liderança que não tem demonstrado. A reforma ministerial, a propalada reforma política e mesmo o engenhoso “déficit nominal zero” não são panacéias, têm efeitos limitados e incapacidade de respostas imediatas. A crise ainda não é institucional e, por sorte, limita-se, por enquanto, ao Parlamento e ao Executivo. Mas o pesadelo de verdade virá se chegar à economia. Então, o mercado, que sonhou o “Brasil investment grade”, pode acordar Argentina.
De qualquer modo, nos últimos dias percebe-se que Lula tem acionado figuras como Palocci, Márcio Thomaz Bastos e outros perfis conciliadores. Abandonou o discurso boboca e vazio da conspiração das elites e assim a lógica canhestra de setores do partido. Seu encontro com o governador de Minas, Aécio Neves, foi ao mesmo tempo intrigante e revelador. Se expressa a gravidade da situação, também indica um tênue raio de luz no fim do túnel. Desse modo, um contato com Fernando Henrique Cardoso surge no horizonte. É hora de todos assumirem seus níveis de responsabilidade. A ampliação do diálogo apontaria para um cenário de trégua mútua ou, a depender do andar da carruagem, até mesmo para um governo de salvação nacional. Longo prazo, esse gesto poderia indicar a aproximação dos setores modernos (fatias do PT e do PSDB), tornando-os menos dependentes do atraso, de quem – sem embargo de seus erros – nos últimos tempos foram reféns. Ainda assim, talvez seja demais acreditar que depois da chuva vem a bonança e não o dilúvio. Os principais atores políticos, hoje, dormem sonos inquietantes e portam-se como baratas tontas; quem sabe, acordem e descubram que são homens.
Carlos Alberto Furtado de Melo – Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e política do Ibmec São Paulo.

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