Esquemas, malandros e otários no patrimonialismo brasileiro
Carlos Alberto Furtado de Melo
A história do Brasil insiste em copiar a si própria, sem saber se é farsa ou tragédia. Nunca se saberá se o pior passou; os pesadelos nos revisitam e de novo estamos envoltos nas incertezas e na fúria das marés de escândalo. Ao contrário do que disse Fernando Henrique, governar não é fácil. É arriscar-se num mar revolto de lobbies, tubarões, corporações, interesses e conflitos, que a gíria, sinteticamente, chamou de “esquemas”. Dominar essa cena, se não para eliminar o mal, ao menos para conduzi-la, requer discernimento e certa malandragem. O “esquema” exige talento, arte, expertise; não se presta a neófitos; não é feito para ingênuos e nem espertalhões. “Malandro é malandro; Mané é Mané”, pontificou Bezerra da Silva. Quem não tem experiência de operador, “vai como muita sede ao poste” e quebra a cara. Já quem conhece o riscado sabe que cabrito bom não berra e samba no compasso. Eis aí a diferença do otário pro malandro; otário quando vê melaço se lambuza; o malandro come aos poucos e leva prá casa. A leitura atenta dos jornais indica que o “esquema” estourou.
É por conta dessa inépcia que o momento político nos leva à construção de cenários os mais tenebrosos. Não há dia sem que novo escândalo irrompa no noticiário. Atinge Executivo e Legislativo – em maior ou menor escala, todos os partidos políticos também. Aparentemente, trata-se de turbulência maior e mais profunda que a crise que derrubou Fernando Collor. Não necessariamente pelo montante de valores, mas pela simultaneidade e multiplicidade de interesses. A crise de Collor se deu em dois tempos: primeiro no Executivo, envolvendo o presidente da República e seu ex-tesoureiro; meses mais tarde, no Parlamento, a chamada “CPI dos anões”. Deixou-se para trás, no entanto, a investigação do financiamento de campanha, onde se esperava chegar aos corruptores. A crise que parou por ali recomeçou por aqui. E, agora, praticamente, tudo veio de uma só vez: Executivo, Legislativo, financiadores de campanha e seus particularismos. Salvam-se o Judiciário – seu tsunami ocorreu há cerca de um ano – e, por enquanto, a Polícia Federal. São instituições de Estado, não de governo.
Até aqui, o tiroteio não atingiu diretamente o presidente da República. Surpreendentemente os índices de popularidade ainda o preservam e nem parece interessar ao sistema político atingi-lo. Ainda assim, mesmo que, por enquanto, nada o incrimine – além inaptidão para o exercício do governo e do poder –, já se especula, com naturalidade constrangedora, o impeachment. Como os fatos correm celeremente, toda especulação se afigura como hipótese. Há muita tensão e ninguém pode afiançar que existam limites e que eles serão respeitados. O “esquema”, confuso, atira para todos os lados. A bala que atingir o presidente pode ricochetear e matar muito mais gente. As circunstâncias de hoje são muito diferentes do tempo de Collor. A integração do Brasil ao mercado financeiro é muito maior; a capacidade de estrago econômico e a profundidade de abalos institucionais também. Naquela época, ao contrário de hoje, tinha-se pouco a perder.
Assim, a crise política chegou ao ponto de governar si mesma. Não permite acreditar no seu arrefecimento imediato e nem vislumbra tréguas. Os conflitos são tantos e dispersos. Tão complexos são os interesses que não parecem capazes de se resolver. Apertado o gatilho contra Roberto Jefferson, o bang-bang começou. É possível que na história brasileira nunca tenha havido tanto chumbo trocado. Os alvejados são muitos, os franco-atiradores não devem ser poucos. Assemelha-se a uma briga de futebol: a pancadaria é geral; quem bate também apanha; os mais espertos correm para o pau da bandeirinha e fazem dele uma arma; os mais precavidos ficam nas laterais do campo e não dão as costas a ninguém. Neste caso, resta saber se serão os veteranos ou a polícia que entrará em campo, de modo a conter os ânimos e dar seqüência ao espetáculo.
Os inúmeros conflitos e a quantidade de boatos que estão no ar, confirmam o quadro: 1) CPI dos Correios; 2) CPI dos bingos; 3) CPI do mensalão; 4) CPI do financiamento de campanha; 5) mensalão municipal (SP); 6) empréstimos bancários com o aval de Marcos Valério; 7) fundos de pensão; 8) Daniel Dantas; 9) compra e venda de legislação tributária e fiscal; 10) IRB; 11) Furnas; 12) cartões de crédito corporativos, nos ministérios e na presidência da República; 13) cartões de crédito supostamente bancados por Valério; 14) Luís Gushiken; 15) pane do Campo majoritário do PT; 16) a Previdência e a Firjan (que remontaria ao governo FHC); 17) José Dirceu; 18) a cúpula do PT (Delúbio Soares, Silvio Pereira, Marcelo Sereno e José Genoíno); 19) “dólares na cueca”; 20) Telemar e Fábio Lula; 21) fragmentação do PMDB; 22) guerra entre aliados; 23) tucanos de Minas Gerais e Marcos Valério; 24) Celso Daniel; 25) ausência de direção nas bancadas do PT; 26) “avião do óbolo”, envolvendo deputado do PFL e a Igreja Universal; 27) Palocci e sua eventual relação com Rogério Buratti; 28) CPI do Banestado (verdadeira bomba atômica); e ainda 29) Romero Jucá e Henrique Meirelles. Além, é claro, de tudo o que pode acontecer enquanto se escreve e se lê este texto.
Isoladamente, cada um destes itens seria o suficiente para desviar o país de uma agenda positiva. A variedade e grandeza dos rolos acima justificam a hipótese de que a quantidade de envolvidos é enorme, tornando trabalhoso, se não impossível, as tréguas. Afastar dirigentes e ministros, dar cabeças, jogar homens ao mar e nomear bodes expiatórios não tem surtido efeito. O sangue continua a correr aos jorros. Ações de retração e apaziguamento – no governo ou no PT –, estranhamente, levam a reações nos bastidores e ao aguçamento da crise. É provável que os operadores da confusão nem estejam mais nos partidos políticos – nem à direita e nem à esquerda –, mas nas franjas, nas margens, à espreita, outsideres do interesse público. Arapongas e “empresários” desconhecidos surgem às mancheias. Grupos operaram milhões na relação promíscua com o Estado; orientam ações públicas; definem gastos, amealham fortunas, transferem riquezas e, é claro, bancam campanhas. Seria o crime organizado de colarinho branco; seria o “esquema” que, de overdose, agoniza?
O momento é grave e o futuro incerto. Muitas são as opiniões de que é melhor caminhar com Lula até a eleição do que partir para uma aventura que pode levar ao esgarçamento do tecido social minando legitimidade e autoridade do sistema político. Ainda assim, nada melhor que a luz do sol para higienizar o ambiente e é muito possível que o ponto em que se chegou não permita volta. Se “tudo vale a pena”, é saudável que a situação ponha nuas as fragilidades e as mazelas do sistema. Se a sociedade conseguir fazer isto com Lula, tanto melhor; se não, arcará com os custos de reformar um sistema político que funciona somente para si próprio. O Estado – traduzem os atuais escândalos – continua privatizado por poucos. Tradicionalmente, dá-se a isso o nome de patrimonialismo, sobre o qual o jurista Raymundo Faoro dizia: “assim é porque sempre foi”. Se “a alma não for pequena”, malandro, eis a chance de mudar.
Carlos Alberto Furtado de Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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