Teoria dos jogos
Carlos Alberto Furtado de Melo
Consoantes, coincidentes e aparentemente articuladas. Sintomaticamente, exibidas pela Rede Globo de Televisão. Estas são as primeiras observações que se pode fazer a respeito das entrevistas deste final de semana, realizadas com Marcos Valério (sexta-feira, 15/07/05), Delúbio Soares (sábado, 16/07/05) e o presidente Lula (domingo, 17/07/05). É claro, a entrevista de Lula foi concedida, na quarta-feira, a uma repórter brasileira de uma televisão francesa e nada teria a ver com as demais. É lógico? Pode ser, mas também pode não ser. Fica a dúvida. É verdade que até aqui o governo e o PT demonstraram pouco ou nenhuma habilidade para articular e sintonizar suas ações, de modo que tudo pode ser mesmo coincidência. Ainda assim, fica no analista a tentação de dar tratos à bola; pensar, com imaginação sociológica, que tudo pode ser maior e que teríamos, enfim, uma boa teoria conspiratória para analisar e compreender, afinal, o que se passa.
Em primeiro lugar, trata-se de entender um pouco do enredo, naquilo que está explícito e no que está implícito. Explicitamente, está algo que a imprensa e a oposição têm chamado de “Operação Uruguai 2”. Ou seja, uma tentativa de explicar a origem dos recursos que chegaram às contas de Marcos Valério e, de algum modo, indicar para onde foram. A dinheirama veio, conforme explicou, do sistema bancário. Portanto, em tese, a grana seria limpa; foi encaminhada para partidos políticos e pessoas indicadas por Delúbio Soares de forma irregular, mas, ainda assim, seria limpa. Recursos de campanha, como se diz. Comete-se um delito eleitoral, brandamente apenado para seus autores e recorrível para os partidos – se estabelecerá em torno disso toda uma celeuma jurídica até que se definam as penas. A operação pode ser tão fracassada quanto o foi a “Uruguai 1”, dos tempos de Collor, ainda assim, as entrevistas do “carequinha” e do ex-tesoureiro – coroadas pela exclusiva de Lula à TV Francesa – serviriam para vários propósitos, a saber:
a) O dinheiro tem origem limpa; não passaria por lobbies e nem licitações dirigidas. Não houve corrupção e, portanto, não há corruptos nessa jogada;
b) Não foi destinado para a compra de parlamentares, mas para o financiamento de campanhas eleitorais. Portanto, não houve agressão à democracia e à legitimidade dos mandatos. “O que o PT fez é o que é feito sistematicamente no Brasil”, disse o presidente Lula ao Fantástico, no domingo, numa entrevista, como já foi assinalado, gravada na França, quarta-feira;
c) O esquema não tem qualquer relação com o governo e é problema do PT e dos partidos políticos que agem assim, infelizmente. “O PT tem autonomia em relação ao governo e o governo mais autonomia ainda em relação ao PT”, disse o presidente à Globo, com a mesma ênfase do nosso grifo;
d) Delúbio é o principal, se não único, responsável político pelos empréstimos e pelo seu destino. Se errou, foi por excesso de vontade e de zelo;
e) Os ex-dirigentes do partido, portanto, nada sabiam – nem eles, nem o ex-ministro Dirceu. Estão todos salvos e agora só resta recolher os cacos do estrago desse terrível mal-entendido.
Somem-se às entrevistas as notícias, notas e análises divulgadas no final de semana e talvez tenhamos o que há de implícito. Aqui e ali pulularam insinuações de que Delúbio teria herdado Marcos Valério, o qual já prestaria seus auxílios, antes, a outros partidos, inclusive os que hoje estão na oposição. A suposição dirige-se claramente aos tucanos de Minas Gerais (Panorama Político, Tereza Cruvinel, domingo, 17/07/05). “Se for à CPI, Dirceu ‘arrasta o Brasil’” é título da coluna da jornalista Dora Kramer, no Estadão de 17/07/05: “sob o argumento de que, se revelar o que sabe, pode carregar muita gente na lama das denúncias de corrupção, o deputado articula para ser chamado apenas a falar na CPI do Mensalão. Ali, acredita que não será confrontado com questões de envolvimento direto do Executivo e poderá limitar o debate às acusações envolvendo partidos e o Congresso”.
Uma interpretação de conjunto, plausível, que procure juntar fragmentos do fim-de-semana, para além das coincidências das entrevistas, poderia ser mais ou menos assim: a justificativa está posta e as ameaças também. Ou se aceita a versão do empréstimo ou liga-se o ventilador e joga-se tudo o que se tem guardado. Se há chumbo contra o governo e o PT, no geral – e José Dirceu, em particular –, também deve haver munição de grosso calibre para o outro lado, a oposição. Além do histórico de Valério – seu currículo, serviços prestados, donativos e o rosário de obras de benemerência política –, há as relações do cotidiano da política, dos acordos, dos acertos, dos ajustes e, não se pode descartar, o lixo atômico da CPI do Banestado que não foi plenamente soterrado, sobre o qual repousa muita especulação, fantasia, boatos e tensão aparentemente justificada.
Arnaldo Malheiros filho, advogado de Delúbio, indicando os caminhos da estratégia de defesa de seu cliente, declarou a O Globo (17/07/2005, página 3) que a solução seria “ou rifar a oposição e a situação ou dar um jeito nessa prática. Do jeito que está, a classe política é obrigada a viver na marginalidade”. Todos os gatos são pardos, todos os cristãos têm pecados e todos estão no mesmo saco parece ser isto o que quis dizer. Logo, nesse jogo de dominó, ocorreria aquilo que os jogadores chamam “fecha natural”. As pontas se fecharam com a branca (o zero). Não há ir adiante e os pontos nas mãos dos participantes somam o exatamente o mesmo valor: empatou! O que fazer? Desfazer, embaralhar e redistribuir as peças; começar de novo. Dará certo? Será o suficiente? Haverá acordo? Quem está ganhando aceita, quem tem medo de perder cede?
As condições de contorno são dificílimas, para dizer o mínimo. Ainda que jornais e revistas não tenham trazido nenhum escândalo novo no final de semana – ao contrário, deu-se espaço vasto aos governistas (Luiz Gushiken, Aloizio Mercadante e Delcídio Amaral); apenas em Veja, o lacerdismo que a tem marcado se manteve presente – na imprensa, naturalmente, a comichão por escândalos permanece. Além disto, outros fatores operam na direção contrária da hipótese da consolidação de um acordo. O número de atores e interesses envolvidos nesta disputa é enorme. Em artigo recente enumerei 29 fatos, boatos ou pontos de tensão. Se o fizesse hoje, talvez já ultrapassasse os 35 ou 40. São diversos agentes em torno desse caos, nem todos articulados com o sistema político, logo, de difícil controle e improvável acomodação. Mesmo os mais intimamente envolvidos com os partidos são indomáveis. Cenas de quase pugilato, na CPI, têm sido freqüentes e o destempero mental e verbal esta semana atingiu o ápice. Da estúpida provocaçãozinha gratuita e desnecessária de um deputado petista, surgiu um justiceiro empedernido de ira santa e olhar rútilo, que, reagindo, por 17 vezes chamou o presidente Lula de idiota e/ou corrupto. Em sua cólera, Arthur Virgílio se assemelhava a um militante do Hezbollah, provocado por um argentino jogador de futebol.
No processo de abertura lenta, gradual e segura do presidente Ernesto Geisel, consta que o general Golbery teria dito a uma liderança do MDB: “segurem seus radicais, que nós seguraremos os nossos”. As forças políticas atuais demonstram interesse em algo do tipo, mas não sabem como fazê-lo. O advogado Arnaldo Malheiros Filho declarou também a O Globo que “O PT resolveu iniciar uma faxina nessa prática política brasileira”. Ótimo! Resta saber se o lixo será: 1) exposto a céu aberto; 2) recolhido, reciclado e transformado; ou 3) escondido debaixo do tapete. Aos matemáticos, fica aqui um bom exercício de teoria dos jogos. Divirtam-se.
Carlos Alberto Furtado de Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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