Cabeças erguidas
Carlos Alberto Furtado de Melo
Todo erro traz uma desculpa; todo engano pede perdão. Equívocos pessoais, com arrogância, nunca são assumidos. É mais fácil dizer que “o inferno são os outros”. Atualmente, “as elites” e “as más companhias” são as responsáveis pelas agruras do governo e do PT. Não há lógica porque os personagens mais comprometidos com escândalo são fundadores do partido. Nesse inferno, zumbis vagueiam sozinhos e mal acompanhados. Fizeram a si o que deles foi feito. À fortuna e às circunstâncias responderam com pouca ou nenhuma virtude. “O castelo cai pela ação do próprio príncipe”, ensinou Maquiavel. Ignorando essa lei, o presidente Lula agora acusa as elites; afirma que, porém, conquistou “o direito de andar de cabeça erguida”. Ora, Sua Excelência deveria acreditar mais no homem. Todos nascem com o direito de andar de cabeça erguida; alguns, entretanto, o perdem, ainda que formalmente ergam as cabeças ao se retirarem dos castelos.
Por vários e distintos motivos, a quase totalidade do país torce para que Lula mantenha a cabeça de pé. Todavia, é inegável, que seu pescoço está em risco. Não é necessária muita perspicácia para perceber que o ambiente político se deteriora de forma veloz e em sua direção. Jornais e editoriais demonstram isto. A entrevista que concedeu em Paris, por exemplo, caiu no descrédito. A princípio pareceu apenas uma dentre as várias barbeiragens que comete. Mas não foi apenas isso. A explicação veio à luz com a edição de Veja. A matéria permite outra interpretação: a pressão de Marcos Valério sobre petistas e governo teria levado ao acordo em torno da “hipótese de crime eleitoral”. Valério teria munição contra o barbudo como mencionou Veja? Certa ou errada, inocente ou propositada, a participação de Lula levantou suspeita e, agora, para desfazê-la o presidente terá que suar sangue.
O milagre, no entanto, é difícil. Apenas pequena parcela da documentação da CPI foi analisada. Membros da Comissão, afirmam que os depoimentos já pouco importam, ficam por conta do espetáculo da mídia. O cruzamento de informações será o suficiente para configurar o estrago e a cassação de vários mandatos. Um acordo com a oposição não pode ser descartado, mas fica dificultado. Primeiro porque o elevado número de envolvidos em torno da CPI faz com que os documentos inevitavelmente vazem; segundo porque a índole dos petistas é incorrigível, o que os leva à ameaças e bravatas públicas. Como se sabe, elas exigem respostas também públicas e inviabilizam conchavos. O caminho vai ficando sem volta, o governo pouco tem a fazer. Se seus operadores se mostraram incapazes diante de uma CPI, imaginem agora que já são três! O termo impeachment antes dito com constrangimento, hoje é mencionado com estarrecedora naturalidade.
Em virtude disto, o próprio presidente parece ter saído a campo para articular a sua defesa. O faz atabalhoadamente, mas sua estratégia parece alicerçada em dois pilares: o primeiro visa aumentar seu colchão de segurança no Congresso; o segundo consiste em tornar o eventual processo de impeachment mais custoso. No primeiro caso, está a reforma ministerial; no segundo o flerte com as massas. Ambos, porém, parecem mais que manjados e até aqui estão apenas estimulando mais críticas do que soluções.
A reforma ministerial, com a concessão de ministérios ao PMDB e ao PP, mostra que o presidente busca de maior blindagem no Congresso. O PP exigiu o ministério das Cidades de forma acintosa. Mesmo com dificuldades em seu campo, o governo bancou a pedida, mas o desgaste foi grande. Da reforma não se pode esperar salto qualitativo considerável. Tampouco a preocupação reside na ampliação da base para a aprovação de agenda positiva no Congresso porque isto saiu do horizonte. Parece claro que o presidente pretende contar com os votos dessas legendas para se proteger de um processo mais incisivo contra seu mandato. No mais, falta a expressão de um projeto a ser perseguido. A reforma ninguém viu, ninguém se importou. A sensação é de que o governo acabou. Enfim, trata-se de uma estratégia defensiva e de eficácia duvidosa, afinal a política adora a traição.
Complementarmente, o presidente resolveu flertar com movimentos sociais. Primeiro, nomeando Luiz Marinho (CUT) para o ministério do Trabalho; agora com eventos de massa. Até a obras de pistas de aeroportos o presidente comparece para cumprimentar e se deixar fotografar com a peãozada. Quer estar se ser visto no meio do povo; ser identificado e confundido com ele. No discurso emocionado, o presidente se defende atacando as elites. A intenção é sabida: é como o menino que chama o irmão mais velho e forte para protegê-lo. Nem seria para briga; apenas a molecada da rua precisa saber que esse irmão existe e que é forte. É o suficiente. Impõe medo e restitui o respeito. Mas se esmorece o ímpeto de alguns adversários, instiga os mais valentes e aventureiros. Desperta, também, reivindicações e demandas adormecidas. O flerte com a massa pode a levar ao namoro com o populismo. E essa parece ser a intenção: a ameaça; colocar sob fogo o ajuste fiscal e os fundamentos da política econômica. Assustando a todos, pode se proteger. A estratégia é ofensiva e o efeito é perigoso; a política adora aproveitar-se da situação. Raramente se pode voltar atrás. O irmão, forte e poderoso, exige um maior quinhão de sobremesa.
O certo mesmo é que retirar de cena presidentes desgastados e isolados é relativamente fácil. Com o apoio das massas é outra história. Lula sabe disso e Hugo Chaves passar a ser a lembrança sempre presente. Na Venezuela, o coronel se mantém no poder em virtude de um fenômeno deste tipo.
No Brasil, o impeachment de Fernando Collor, que mais se assemelhou a uma festa cívica, fez com a opinião pública mal acostumada. Collor não tinha base social orgânica, partido ou história; arrumou diversos e simultâneos conflitos e ficou só com sua mulher Rosane. A propósito, foram embora ambos de cabeças erguidas. Já Lula é um símbolo; está fortemente enraizado no movimento social e tem uma história de arrepiar. Pai e mãe analfabetos não dão indulgência política a ninguém, mas a imagem demarca uma história de dificuldades e conquistas, não raro emocionante. Poderá se colocar como vítima da difícil mobilidade social brasileira; da aristocracia impermeável; do preconceito contra pobres que não se entendem com os “érres” (Rs) e “ésses” (Ss) da língua portuguesa. O preconceito social existe e politicamente pode ser explorado contra si próprio.
As pesquisas ainda mostram que o presidente conta com elevada popularidade. Mas o apoio dos formadores de opinião já foi pelo ralo. Perder a massa seria, então, questão de tempo, dizem os especialistas. Assim, enquanto pode contar com elevados níveis de popularidade, o presidente tenta estancar a sangria que ocorrerá se nada for feito. O discurso emocional e palanqueiro captura grotões que se beneficiam de políticas públicas e se solidarizam com “a história do retirante que chegou a presidência da República”. Getúlio Vargas passou à história como vítima. Morto, virou santo. Lula não precisa e provavelmente não quer tanto. Mais vivo, pode se proteger até o final do mandato, pelo menos. Isto bastaria.
Onde isso tudo pode dar? Como já se disse, a imprevisibilidade é a marca dessa crise. Longo prazo, pode ser positivo para as instituições. O diabo será chegar até lá. A estratégia de buscar o curral eleitoral e agitar a peãozada impõe riscos. O discurso emocional cobra pedágios que já assustam investidores nacionais e internacionais. A economia que até aqui estava tranqüila começa a ficar atônita e receosa com do efeito manada.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |