Xadrez com luvas de boxe
Carlos Alberto Furtado de Melo
O depoimento do deputado José Dirceu, na Comissão de Ética da Câmara, não era mesmo para ser decisivo, ainda que a mídia, César Maia e Garotinho tenham vendido esse Per Pay View com ares de final de campeonato. O jogo não acabou e nem acaba tão cedo. O embate entre Dirceu e Jefferson mostrou que a disputa está ao nível do xadrez ao invés do boxe anunciado. Concomitante ao depoimento, o ministro Antônio Palocci, ao lado de John Snow (secretário do Tesouro norte-americano) veio a público; preventivamente, para dizer que nada abalará a economia. Foi um bispo que se moveu para proteger a Rainha. Em sentido contrário, o PTB representou contra os deputados envolvidos nas denúncias. Trata-se do cavalo que saltou sobre os peões. Nenhuma novidade; são lances clássicos. Ainda assim, resta a tensão: jogado com luvas de boxe, os jogadores podem derrubar as pedras, reis e rainhas inclusive. Haja habilidade.
José Dirceu, como se era de esperar, declarou que não renunciará. Não combinaria com a sua história. Pediu justiça; diz que não é o réu, mas a vitima de meios de comunicação e forças políticas. Enquanto as TVs focam Roberto Jefferson, o ex-ministro declarou-se perseguido pelo que representa para a história do país, a esquerda, o PT, a eleição de Lula e o governo. Coloca-se, assim, como um símbolo extemporâneo que alguém supostamente deseja destruir. É mais sutil – e mais inteligente – do que a teoria da “conspiração das elites; golpe da direita, ou direito de andar de cabeça erguida”. Ainda que dita com toda a humildade dos acuados, é mais arrogante também, pois lhe dá o status da “superioridade militante”. “O Brasil conhece a minha vida e não há nada que pese contra a minha pessoa (...) comecei no PT como militante e sou militante até hoje”, diz.
Fez uma enfática defesa do PT, algo que, da eclosão dos escândalos até aqui, ninguém fez com tamanha eficiência. Tentou, assim, manter aberta a porta do partido, mesmo que perca o mandato. Não renuncia porque o PT que sobrar continuará sendo sua trincheira, se vier a perder o mandato. Definitivamente, é um animal político. “Não aceito ser banido da vida política do país, de novo, nem que cassem o meu mandato”, enfatiza num discurso basicamente voltado para o público interno, mas que resgata a saga de gerações que não apenas a sua. Na sua ótica, se for cassado, será um golpe contra a esquerda e a história. Assume a dimensão de mito. Enquanto Lula é um mito dos movimentos sociais, Dirceu tenta consolidar a imagem de mito da esquerda dos anos de chumbo. Está preparado para a briga, num tom e com as armas as quais ele – e não os deputados da Comissão – escolheu. Esses, no geral, os deputados são impotentes diante do potentado que é o ministro, assim chamado repetidas vezes. Os parlamentares mais e ousados estão nas CPIs.
Todavia, não assume os pecados da direção do PT. Queima Genoíno, assa Silvinho, torra Delúbio. “Só respondo pelo que participei, decidi e autorizei”, tirando de si as responsabilidades “dos outros”. Seu maior esforço será convencer que realmente foi assim. Precisa recuperar a credibilidade e, para isto, se mostra menos perigoso e mais confiável. Já foi sex simbol, sabe arriscar sorrisos e piscadelas. Mas é ainda ameaça latente. Que bombas teria? Não importa, sabe que a bomba mais eficaz é a que não se ativa porque não pode ser usada por irreversível. Basta tê-la e prevalecer sobre as vontades. No que se refere ao governo, aliviou: “não é verdade que estou magoado com o governo ou com o PT”. Com a oposição, pediu desculpas pelas injustiças cometidas no passado do governo FHC (caso Eduardo Jorge). De modo sutil, mas gradativo, seu alvo escolhido foi Roberto Jefferson. Ateve-se a ele e pelo menos por enquanto poupou adversários permanentes e aliados do passado. O petebista “quer transferir a prevaricação que cometeu (...) é réu confesso”, disparou.
Enquanto pôde falar sem ser interrompido dominou a cena sem tomar iniciativa incisiva de ataque; manteve a todos no fogo brando do idioma caipira, sua marca. Definitivamente não é um Silvinho e nem um Delúbio qualquer. Pensa. É articulado. Fala, não balbucia. Gostem dele ou não, tem lógica e estatura política; intimida (Jefferson percebe isto). Desfila realizações e faz a defesa do governo que ainda ninguém fizera. Suas propostas, diz, foram sempre republicanas e políticas. Do outro lado do ringue, como se fosse um duelo, Roberto Jefferson espera e anota. Faz parte do espetáculo.
Ao soar o gongo, Jefferson argüiu com a ironia costumeira; exercitou a verve que, no fundo, também já vai cansando. É o criminalista defendendo causa própria diante do país-juri. Desqualifica a testemunha a quem quer incriminar. “Não existe mensalão!!!! Dirceu vem aqui todo humilde... Dirceu ensinou o Delúbio, o Silvio Pereira e o Marcos Valério a mentir”’, ironiza e ataca. “É o professor dessa escola de mentiras”, carimba. Olhando para as câmeras, pergunta ao juiz-opinião-pública: “você que está em casa acredita nisso?”. Não se trata apenas de um debate parlamentar. É antes uma disputa de mídia. A política moderna concilia escândalo e espetáculo. Não raro resume-se a isso. O rosto do galã conquista a simpatia, mas o vilão também chama a atenção.
Agressivo, o petebista conclui que o petista não cometera apenas crimes parlamentares, mas crimes da administração. A questão não seria apenas a perda de mandato, mas da liberdade. Dirceu, diz Jefferson, era, de fato, o presidente do PT, não há “antiga direção” a culpar. Com possível razão, denuncia: na biografia e no romantismo dos anos rebeldes, José Dirceu procura ocultar responsabilidades. Procura tirá-lo da pose. “Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos”, exagera. Perdendo a elegância e o sangue frio, perdeu os telejornais. Tranqüilo por fora, Dirceu se quietava impassível, “que nem Muhamed Ali”. Respirava fundo, encontrava paciência diante de um adversário quase esbaforido. Em 1974, no embate que tiveram no Congo, Cassius Clay puxava para o clinch um Foreman cansado. Disparava no seu ouvido: “é só isso que você tem para mim, George?”. De certo modo, no primeiro depoimento que prestou, Roberto Jefferson fizera o mesmo com Sandro Mabel. O duelo não foi de argumentos, mas de nervos.
Como a ironia e a verve se mostravam insuficientes, Jefferson lançou mão dos “assuntos não republicanos” que disse tratar nos tempos de Palácio. Trouxe ao palco a Portugal Telecom. Confusamente, sugeriu o conhecimento do presidente. Acrescentou que Dirceu não agia sozinho: “Vossa Excelência era o todo-poderoso, mas não era tão poderoso assim”. Quem poderia ter maior poder? É claro, pode-se inferir que fosse o presidente Lula. Ainda assim, pouco incisivo, Jefferson recuou logo depois. É incendiário, mas não é louco e sabe dos limites de segurança. Não apontou diretamente; olhou de soslaio, de esguelha. Deixou no ar, mas não foi em frente. Para Dirceu foram “palavras ao vento..., afirmações grandiloqüentes e teatrais; mentiras deslavadas”. “Quem acusa deve provar”, recomendou. Poucos e desanimados foram os parlamentares que acorreram a Jefferson. Indícios de acordo? Cedo para afirmar. Por enquanto, ficou a palavra de um contra a do outro em montanhas de documentos nas CPIs e nas redações. Portanto, o jogo e a crise continuam.
O que se deve depreender desse duelo é a contenção dos atores. Para o bem e para o mal, nenhuma bomba estourou ainda que a crise, a confusão e a tensão continuem. Enquanto for possível, as ameaças estarão no ar para como barreiras de contenção e instrumentos de equilíbrio; por isso chamam-se ameaças. Talvez, justamente por isso, para que as bombas não detonem, o ministro Nelson Jobim tenha falado em “saída política”. Na Comissão de Ética, o duelo não acabou com nocaute. Alguns rounds foram jogados e Dirceu ganhou este último, mas, inega velmente, ainda está perdendo por pontos. Todavia, além de preparo, o ex-ministro demonstrou que não ateia fogo às vestes e isso impõe alguma racionalidade ao jogo; Jefferson, como se disse acima, também não é louco, embora incendiário. Se há um Nero alheio, dedilhando sua harpa, certamente não é nenhum dos dois deputados. Este é o lado positivo e, em tese, acalma uma parte da platéia que se esforça pelo empate. Ainda assim, por trás da relativa calma, torres, bispos, cavalos e peões são mobilizados pelas luvas de lutadores de boxe que nada entendem de xadrez. O tabuleiro ainda corre riscos.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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