Palocci: "é assim que se faz"
Carlos Alberto Furtado de Melo
Política também é profissão, embora nem sempre os políticos lembrem disso. Bons ou maus, aptos ou inaptos; talentosos ou canastrões, os profissionais se diferenciam nas horas delicadas. O ministro Antônio Palocci, independente do desenrolar dos fatos, mostrou-se um profissional. Existissem dois Paloccis no ministério, a situação seria menos complicada, embora fosse possível que o presidente se enrolasse assim mesmo. Não admira o despeito com que o ministro foi tratado nas hostes petistas. O ex-militante da Libelu colocou leninistas da ALN, operários da CUT, militantes católicos e burocratas do partido no bolso. Conquistou e manteve o espaço que a morte de Celso Daniel lhe abriu. Se a fortuna lhe sorriu, Palocci tem se feito merecedor. Se sair desta, servirá de exemplo positivo e pedagógico: "é assim que se faz".
Primeiro, veio ao público com rapidez inusual. A calma de sua exposição, sem ler; a elegância no trato e a objetividade das respostas destoaram do padrão petista de reação. Não puxou faca, nem mostrou dentes a ninguém. Abriu mão de brandir a ira dos justos e até mesmo Rogério Buratti, que ainda prestará depoimento na CPI, obteve sua compreensão. Ponderou o ministro que, na situação de algemado, humilhado, trajando um macacão laranja - além de aberrante, uma metáfora constrangedora -, natural seria mesmo abrir o bico; dizer o que sabe e o que não sabe. Nos tempos da repressão, dizia-se que "fulano levou um tapa para falar e uma surra para calar a boca". Parece mais ou menos isto. O importante recurso da "delação premiada" pode se transformar em instrumento de coerção. O "dilema do prisioneiro" sem cálculo, sem questionamento ético; apenas vontade de ir embora, aflição de se livrar das grades, do horror da cana, ânsia por corresponder às expectativas dos inquiridores. Há quem sugira que Marcos Valério, na mesma situação, falaria o que sabe e o que duvida. Subliminarmente, a estocada real de Palocci foi ao Ministério Público e aos tucanos paulistas. "Conversará com o governador Alckmin", pontificou o ministro, sem dar bandeira.
Enfim, defendeu-se sem agonia ou histerismo. Apenas diminuiu a temperatura, jogou água fria nas cabeças quentes. Agiu, como aquele que "sabe o que fez e o que não fez", como disse. Defendeu Lula, sem bravatas, sem culpas às elites ou a oposição. Fez pontes, elogiou governos anteriores, reconheceu méritos em FHC e flertou com os tucanos. Sua "blindagem" consistiu menos num escudo e mais na restrição da possibilidade de novos tiros. Impôs a racionalidade de médico e bom moço, sinalizou desapego ao cargo. Humildemente, se pôs abaixo das instituições. Não chamou o governo de "seu" e nem se proclamou herói de sua geração. Foi antítese de Dirceu e o espelho do que Lula deveria ser, mas não é. Lamentou apenas não poder fazer brincadeiras, contar piadas, diante da gravidade da ocasião. Chegou a se despedir com o natural "foi um prazer estar aqui presente", o que não deixou de ser um gracejo.
A situação parece tornar mais evidente o que já se sabia: neste momento, não haveria ninguém melhor que "o ex-prefeito de Ribeirão" para defender a economia, não apenas do humor do mercado financeiro, mas também da inépcia do próprio governo. É evidente que o ministro poderia ser substituído por Murilo Portugal ou Marcos Lisboa, tecnicamente mais qualificados que ele. Mas quem admite a hipótese minimizando os custos dessa troca, não entende patavina da política nacional: na presente crise, ninguém teria tão fortes instrumentos de persuasão sobre o presidente da República, ninguém dominaria o código do PT e a pouca tolerância da oposição tucana e pefelista. Além disso, a simples admissão da maior qualidade técnica de Portugal ou Lisboa parece mesmo piada de português. Nas circunstâncias, um ministro puramente técnico poderia reforçar o estigma do "técnico desprovido de sensibilidade social e coração". Diante de eventual inevitabilidade de maior aperto fiscal, seria o ministro técnico o primeiro a ser crucificado. É claro que o país pode sobreviver ao desastre, como ponderam alguns analistas. O náufrago sobrevive por anos, numa ilha, e vive da sorte e da expectativa; a Indonésia sobreviveu ao tsunami. Ambos o fazem sobre os escombros.
Novos fatos poderão até desmentir o desmentido do ministro, é claro. A principal característica desta crise é a imprevisibilidade. Órgãos de comunicação - sobretudo a revista Veja, a quem coube o maior sabão - podem buscar mais lenha para essa fogueira; o ministério público e o governo de São Paulo podem ter mais uma carta na manga. Amanhã é outro dia e nesse clima nada se sabe o que será. Nosso futuro, como se tem visto, nem a Deus pertence. Mas há um fato inegável: Palocci mostrou que é do ramo, que "o dito por não dito" se tiver que beneficiar a alguém, não será aos adversários. Os fortes quando tomam veneno, esse veneno só os torna mais fortes. E Palocci pode ter se fortalecido ao invés de sair prostrado, como se podia esperar. Se parar por aqui, o "Risco Buratti", que vinha atormentando o mercado, pode ser "precificado" num custo relativamente baixo, ainda que o PFL, sobretudo, tente convocá-lo para o teatro das CPIs. O custo relativamente baixo e o benefício elevado: exposição midiática e combatividade oposicionista. César Maia já compreendeu isto e continua ocupando a cena. É pouco provável, no entanto, que o status quo nacional dê amparo a brincadeiras desse tipo.
Em resumo, a entrevista coletiva conduz a três importantes conclusões: 1) o governo não está à altura do ministro; se Palocci for embora, pior para Lula; 2) o país rondou os tais "limites da irresponsabilidade"; mas, por enquanto, há possibilidade de contornos políticos e manutenção do ministro; e 3) no PT, a situação dos "queimados" se complica ainda mais. Em outros termos: é Palocci e não Lula quem dá credibilidade ao governo; a oposição ficou em situação delicada quando se viu na condição de responsável pela segurança do ministro, não podia ir em frente, sob pena de ser cobrada pela história. A coletiva permitiu recuos. E, por último, pela comparação, a credibilidade dos principais personagens desta crise (inclusive Lula) fica ainda menor. Nem todos são iguais a Palocci. Seu bom desempenho realçou o fiasco geral.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, Doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |