O rescaldo de 2005 e o plausível para 2006
Carlos Alberto Furtado de Melo
A cena ainda é de desarrumação, nota-se que houve briga feia, mas tom da discórdia está inegavelmente mais comedido e os atores parecem mais civilizados. Pela força da pancada, era para a oposição ver a parada da reeleição liquidada desde já. Mas o presidente, como há mais de um século anotou Euclides da Cunha a respeito do nordestino, parece ser mesmo um forte; ou pelo menos, duro na queda. Os níveis de popularidade baixaram, mas não ficaram rastejantes; as condições de contorno na Câmara, no PT e no governo, hoje são melhores do que há trinta dias. Na opinião pública, o que se percebe é certo cansaço com o espetáculo dos escândalos. O ímpeto purificador de alguns meses atrás não é mais o mesmo; Roberto Jefferson se foi e sem ele a ópera perdeu o que havia de aberrante, de extraordinário e folclórico. Além disso, quem já perdeu dedos sabe que é muito melhor ceder os anéis e assim alguns corpos foram ou ainda serão jogados ao mar.
Esse é o rescaldo que já se pode fazer do surto da febre aftosa que afetou a política nacional. De concreto, vê-se que os meses se passaram e o presidente não fez loucuras populistas para desviar o foco da crise; abusou da incontinência verbal, mas objetivamente agüentou firme; o Banco Central continuou autônomo e Antônio Palocci, quando sob mira, saiu ileso pela tangente. O ambiente econômico ficou inalterado e até se começou a acreditar numa autonomia em relação à política. Ora, foram justamente as escolhas políticas que resguardaram a economia – mas este é outro assunto. O importante é que em virtude disto, há sinais de que 2006 será um ano de crescimento. Analistas apontam para essa perspectiva que, de algum modo, deve elevar a popularidade presidencial, ou pelo menos, servir de redutor para o natural desgaste. Assim, se o propósito era atingir Lula, resguardando a saúde econômica do país, até aqui pelo menos, o plano deu apenas parcialmente certo, pois é dessa fonte que Lula beberá para se fortalecer. Em resumo, pode-se dizer que o escândalo do mensalão tirou a enorme dianteira que Lula tinha no início deste ano, mas, pelo menos por enquanto, não o tirou da corrida.
Saudável, a economia transfere para o presidente uma parte do seu vigor. Se o atual cenário traz a lembrança do governo Sarney, no que se refere ao clima político, a atmosfera econômica aponta para o oposto. De tal maneira que para enfraquecer Luiz Inácio da Silva de modo mais agudo será mesmo necessário elevar o tom das críticas e até multiplicar os escândalos; atingir sua honra pessoal ou familiar; provar seu comprometimento direto. Fora isto, arrastar os processos de cassação e erodir ainda mais a imagem do PT não parece ser o suficiente. Calejados, os petistas já ensaiam o revide. Mas o “tudo ou nada” não combina com a política, que racionalmente busca soluções de equilíbrio. Guardar posições e esperar, às vezes, é o melhor a fazer. Resta saber se a oposição estará disposta ao aprofundamento da crise a tal ponto e risco ou se está satisfeito com o estrago já causado. Por enquanto, é exatamente do campo da oposição que se espera definição para que o jogo continue.
Quem vencerá o pleito de 2006, é claro, não se sabe, mas o cenário da disputa começa a se delinear. Não há bolas de cristal e nesta altura o pior de tudo podem ser as certezas e as afirmações peremptórias. A zona analítica de conforto não está no provável, mas no plausível. De todo modo, não nos iludamos, ainda que dentro de limites, o certo é que a campanha presidencial do ano que vem será mais do que tensa; o fogo virá cerrado, além de muita bala perdida. Mesmo sob algum controle readquirido desde a eleição de Aldo Rebelo, a tensão presente sobreviverá, quem sabe, até 2007. Lula não seria (e não será) candidato a uma derrota certa. Se disputar, jogará o jogo que lhe permita vislumbrar a vitória; é natural acreditar que se puder e for o caso, deve atacar com as mesmas armas com que for atacado. Haveria elementos para isto? Talvez não; mas talvez sim, e esta hipótese não deveria ser descartada a priori. Tampouco a oposição – que adquiriu força, organização e ânimo com a presente crise – deixará por menos; a ressurreição de Lula, depois de tudo, seria desmoralizante e pior que a derrota é chegar inutilmente tão perto da vitória.
E o mais plausível é que tenhamos duas candidaturas fortes: a do governo e a do PSDB-PFL; uma candidatura que deve ser cristianizada pelo PMDB, provavelmente a de Anthony Garotinho, que, pelas regras atuais, se fortalece na máquina partidária, mas fica sem o apoio das principais lideranças e dos Estados; além de uma candidatura que pode surgir como alternativa moderada, conciliatória, no meio dos tiroteios. Esta, evidentemente, ainda não apareceu, pois o tertius requer, antes, a polarização entre o primeiro e o segundo. Outras candidaturas menores, voltadas para o acúmulo partidário e com vistas a 2010 devem proliferar. É razoável que isto aconteça num momento de rearrumação partidária, como acontece atualmente.
No período eleitoral, a imprensa não terá tanta liberdade editorial como tem agora ou pelo menos será obrigada a dar no cravo e também na ferradura; diferente de hoje, o pau que der em Chico, terá que estalar nas costas de Francisco também. A mídia não poderá, sob pena de perda de credibilidade, escolher um único alvo, como foi o caso do PT, neste último período. Além do mais, não faltará folha sensacionalista a apostar na imagem da “farinha do mesmo saco”, na desqualificação geral, no niilismo: o sensacionalismo e o cinismo jornalístico têm essa índole e é pouco provável que consiga contê-la. Como o sistema político está em muitos aspectos putrefato, não faltarão larvas para dilacerar as vísceras de todos os partidos e personagens. No ano que vem, concorrer, antes de tudo, será um risco pessoal.
Lula terá um partido desgastado, é verdade; mas ainda contará com uma máquina partidária respeitável, organizada e espalhada pelo território nacional – que outro partido brasileiro mobiliza, num momento de crise aguda, mais de 300 mil filiados num processo interno? Em que pese o desgaste, o presidente terá também o benefício do governo, inaugurações e realizações para mostrar. No entanto, não mais contará com as ilusões e as esperanças de um paraíso na terra: a ausência do medo de ser feliz será substituída pela descrença na felicidade utópica. Isto não deixa de ser um avanço institucional e um amargo sinal de maturidade política. Na classe média, o desgaste, o preconceito e a decepção devem contar mais alto do que no povão. Neste setor, as políticas suplementares, como o “Bolsa Família”, e o relativo crescimento econômico com algum aumento da oferta de postos de trabalho devem pesar favoravelmente. A disputa será de opinião na comparação entre este governo e o anterior. Na classe média urbana e em alguns setores da imprensa haverá o brado da moralidade; os setores populares farão oferendas a “Lula, pai dos pobres”. Números para todos os gostos, contando ora a favor de um, ora de outro, deixarão a todos confusos. O equilíbrio dessa equação, no entanto, não será o populismo, mas a credibilidade econômica que permita o refinanciamento do Estado e o crescimento continuado. E isto se dará menos por princípio do que por pragmatismo.
No PSDB, a disputa interna será o primeiro round do combate a que o candidato se propõe. Para José Serra não interessa um candidato competitivo que não seja ele próprio. Se Geraldo Alckmin vencer a eleição de 2006, na melhor das hipóteses Serra será candidato apenas em 2014, aos 72 anos de idade. Tampouco é interessante uma derrota tucana, na qual Alckmin, mesmo perdendo, faça boa figura. Isto colocaria o governador no topo das expectativas para 2010 e novamente Serra seria jogado para 2014, ou para as calendas de 2018. A derrota, é claro, também não é bom negócio, a não ser que se aposte no desgaste ainda maior do segundo mandato de Lula. Mas isso, francamente, faz pouco sentido. Para Alckmin, por seu lado, há a possibilidade de ganhar tempo, concorrendo a uma vaga ao Senado, qualificando-se como a principal liderança de oposição ao eventual segundo mandato de Lula. Ainda assim, o custo seria engolir Lula por mais um mandato ou José Serra por dois – não se sabe o que seria pior para o governador. Além disso, esses cálculos a tão longo prazo nunca dão certo. O melhor mesmo é aproveitar o bom momento de 12 anos de realizações no governo paulista. Em 2010, isto já será história, portanto, para ele, ao que parece a hora é mesmo agora.
Também o PFL atormentará a vida dos tucanos. O apoio terá, obviamente, um custo. Não haverá problemas para que Cesar Maia retire sua candidatura, de resto, desde sempre fictícia. Ainda assim, a natural reivindicação de contrapartida é inevitável. O preço poderá ser a candidatura de um pefelista ao governo do Estado, com apoio do PSDB (Guilherme Afif Domingos, por exemplo) ou a elevação do atual vice-prefeito, Gilberto Kassab, ao comando da capital paulista. Esta é, pelo menos, a pretensão dos partidários de Jorge Bornhausen. O pai da noiva, desta vez, reivindicará um dote mais significativo que a discreta vice-presidência da República.
Serra e Alckmin, portanto, já disputam espaços. O governador tem viajado o país e aparecido na mídia como nunca; sua esposa já ocupa as capas de revista e este é um inequívoco sinal de que a campanha de Alckmin começou. Já o prefeito paulistano perdeu relativo espaço no partido com a condução de um desafeto, Tasso Jereissatti, à presidência do PSDB. Ainda assim, Serra não é de abrir mão de espaços tão facilmente, manterá postos-chave na hierarquia tucana, ao mesmo tempo em que apara arestas com o PFL. Ao contrário de 2002, Serra e o PFL não apenas deixaram de se agredir, como ensaiam parcerias e conchavos. Além disso, José Serra, mais conhecido nacionalmente, terá o irrefutável argumento da boa colocação nas pesquisas de opinião. Isto não passará ao largo do cálculo político nem de tucanos e nem de pefelistas. No que tange ao modo como enxerga a candidatura de Lula, parece lógico que não lhe interessa aprofundar demasiadamente o desgaste do presidente, de tal forma que de tão fraco até Geraldo Alckmin possa batê-lo nas urnas. O jogo entre os tucanos, nos próximos meses, deve ser cheio de requintes, seduções, promessas a parceiros e algumas traições. Política é assim.
O PT – bem ou mal e com menos defecções do que se esperava – vai se reorganizando de modo relativamente surpreendente. As bancadas ainda continuam desorientadas, mas isto não é novidade. Importante é notar que socialmente o PT não se esfacelou. No mais, depois de tantas voltas, o “campo majoritário de Lula” continuará dando as cartas. O partido fará a vontade do presidente até porque o presidente é a única alternativa do partido. Eleger bancadas tão grandes quanto possível passou a ser a principal lógica da legenda e é Lula quem colabora decisivamente para isto. Talvez somente ele. Portanto, definida a vitória de Ricardo Berzoini e a composição do Diretório Nacional, o mais óbvio é que o PT se volte para 2006 de modo mais coeso do que se esperava, em que pesem desavenças inevitáveis nos estados (sobretudo São Paulo). Atualmente, o público interno clama pelo revide político. Machucada, a base social quer ver os adversários sangrarem tanto quanto sagram os petistas. Mas, dizem alguns dirigentes, tudo tem seu tempo. O alvo ainda não está claro: Serra, Alckmin ou Fernando Henrique? Neste momento, bater em um poderia significar fazer favorecer o outro. Como disse acima, a bola ainda está com os tucanos e, nos próximos meses, é naquele ninho que as atenções devem se localizar.
Carlos Alberto Furtado de Melo, cientista político, doutor pela PUC-SP e professor de sociologia e política do Ibmec São Paulo.

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |