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"Ouro de Cuba", Merilyn e a intolerável tranqüilidade.

Carlos Alberto Furtado de Melo

Era de se esperar que o conflito recrudescesse. Desde a propina nos Correios, em abril, a oposição tem batido forte e o presidente, embora balance, não cai. A lógica diria ser o caso de aumentar a intensidade e a força das pancadas. Exatamente como está acontecendo. Por outro lado, também era de se esperar o momento em que governo e PT passassem ao ataque. Se taticamente houve o momento de apanhar calado; estrategicamente seria preciso dividir o desgaste com adversários. Bom cabrito não berra, mas dá cabeçadas. O PT começou a preparar o revide quando acertou o senador Azeredo. O troco da oposição veio com a denúncia dos dólares cubanos – o “ouro de Cuba”, como dizia no passado. Para se proteger, o governo ameaça desenterrar antigos cadáveres. É assim... Enquanto isso, o presidente celebra aniversário com um “Happy Birthday to you, Mr. President” entoado por Fafá de Belém. O som e a cena fazem ecoar a mórbida lembrança de Teotônio, Tancredo e Ulisses. Cada um tem a Merilyn que merece.

O certo é que a briga eleitoral agora começou de verdade e será assim pelo próximo ano. Lula não se enfraqueceu como seria justo supor e isto fez com que se frustrassem os que o indicavam como carta fora do baralho de 2006. Depois das oscilações dos primeiros meses, as pesquisas de popularidade presidencial demonstram que a tendência é de estabilização, em índices relativamente elevados. Para usar expressão de Nelson Rodrigues, o PT mesmo depois de apanhado “como uma ratazana grávida” demonstrou força. O processo de eleição interna mobilizou mais de 300 mil filiados. Na baixa, o número é extraordinário e, no mérito, não importa porque motivos ou incentivos, essa legião se abalou até as sedes do partido; num sinal de que o pulso ainda pulsa, a legenda está viva: muita gente acredita que tudo não passa de “armação da burguesia”. Além disso, os programas sociais do governo e as perspectivas de continuada melhora do ambiente econômico servem como âncora que prende o governo a um porto relativamente seguro.

Lula tem o apoio de parte da massa e sua candidatura – se nada o atingir e de modo mais agudo – estará definitivamente colocada. Como temos repetido, o presidente não concorrerá a uma derrota certa. Disputará se contar com chances claras e oportunidade de mantê-las até a eleição. Por sua vez, a oposição parece ter percebido que não bastará minar as fileiras do PT e deixar Lula incólume de modo a preservar a economia do país. A cassação de dúzia e meia de deputados não parece ser o suficiente. Aos poucos, desenvolve-se a percepção de que a preservação do bom ambiente econômico, até aqui uma bandeira também da oposição, não deixa de servir como plataforma para que a candidatura de Luiz Inácio decole. As positivas perspectivas econômicas para o ano que vem criam um clima em que o mensalão e “as trapalhadas do PT” passam a ser compreendidas como questões de somenos importância diante do “crescimento econômico promovido pelo governo”.

De tal modo que, se a oposição pretende, de fato, enfraquecer o presidente, precisará se desfazer dos punhos de renda e abandonar a imagem de “bom-moço-economicamente-reponsável”. Foi neste contexto que – praticamente em tempo real com a berlinda de Azeredo – a história do “ouro de Cuba” surgiu, ou pelo menos foi oportunamente apropriada como resposta política, iniciando nova rodada de desavenças. Mais uma vez, a denúncia foi revelada pela revista Veja. O PT parece cansado com a insistência da revista e deflagrará conflito também contra a publicação. Muitos argumentarão se tratar de atentado à liberdade de imprensa. Pode ser. Mas é inegável que a revista entrou num jogo de desafios. Certa ou errada, verdadeira ou falsa, Veja se tornou o principal algoz do governo do PT. Os petistas declararão guerra, até porque, desta vez, o assunto é mais sério e a matéria não parece tão calcada em fatos, evidências e provas. Recorre-se, mais uma vez, a antigos assessores do ministro Palocci e à supostas caixas de Uísque recheadas com dólares legítimos. As provas, por enquanto, não vão além de insinuações de um morto.

Como se sabe, denúncias desse tipo podem trazer sérias conseqüências: comprovadas, colocarão o ministro na linha de tiro, com efeitos diretos para a economia do país; além disso, estariam dadas as condições para o cancelamento do registro do PT, a proibição de todas as candidaturas do partido e o efetivo encaminhamento do impeachment do presidente da República. Não comprovadas, a credibilidade da maior revista nacional estaria em cheque, assim como estariam enfraquecidas as críticas da oposição. Ao contrário do que tem sido de seu hábito, o líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia, arriscou uma resposta de relativa inteligência: “agora só falta dizer que os recursos do PT vieram de Bin Laden”. Pois é, a falta de provas pode levar a esse tipo de desmoralização, ainda que a história (ou estória) possa conter elementos de inegável verossimilhança.

A lógica da disputa que pode estar se materializando é coerente com os objetivos de anular a força de Lula e do PT. Mas o “vai ou racha”, o “tudo ou nada”, se não for e não ficar com tudo, racha e deixa sem nada. Os riscos são notórios e é por isso que a oposição, após final de semana de muitas declarações carregadas de dramaticidade, optou pelo comedimento, pelo menos de início. De todo o modo, a tensão volta ao ar e isto é mais um forte indício de que não haverá trégua, de que a luta, companheiros, continua até não se sabe quando.

Não se faz revelações e ameaças desse tipo sem flertar com riscos de reação ensandecida. Embora Lula e Collor venham apresentando uma série de semelhanças no que se refere ao trato da política, o impedimento do atual presidente não será algo tão simples e prosaico como foi no passado e isto os diferencia de forma absoluta e inconciliável. O presidente e seus interlocutores têm sinalizado que não ficarão calados. Ameaçam com retaliações desenterrando questões que a civilidade da transição entre os governos anterior e atual acordara em sepultar. Além do mais, não há como ignorar que Lula e o PT estão profundamente enraizados nos movimentos e em setores socais mobilizados por todo o país. Não se brinca com a cassação do registro de um partido como o PT, sem aguçar o bolchevismo que ainda vige na legenda.

Além do mais, trazer a imagem do ministro Palocci de volta para o centro dos escândalos, ao contrário do que alguns analistas imaginam, compreende riscos, sim. Palocci é o ministro que tem maior ascendência sobre Lula e maior credibilidade pública. Desnecessário repetir que não há Murilo Portugal capaz de preencher esse espaço. No mais, um último ano de mandato sempre permite a elevação do índice de aventura: a política que até então estava condicionada pela economia passa a condicionar a economia; o raciocínio fiscal desaparece diante do aguçamento da disputa e da radicalização eleitoral. No Brasil, se consolidou o entendimento que, em política, o feio é perder. Logo, tudo é justificado e perdoado pela vitória. As campanhas nos municípios, no ano passado, mostraram sobejamente isto; as negociações para aprovação da “MP do Bem” também.
É claro que se pode intuir que não interessa à oposição esticar demasiadamente a corda, sob pena de ser responsabilizada por eventuais abalos. No que tange ao PSDB esse raciocínio, de fato, parece fazer sentido. Bem colocado na corrida eleitoral, não interessa turbulência além do necessário e fora do controle. Já basta a disputa que viverá internamente. Todavia, este raciocínio, não parece adequado à análise do PFL. Precisando aumentar seu cacife, o partido assume o papel de “PT de ontem”, com sinal trocado. Enquanto o PSDB opera com bisturis, o PFL prefere a marreta e a bigorna. Por isso, não há ilusão: os últimos fatos demonstram que a paz só pode ser efêmera ou prelúdio de nova guerra. Os padrões de condução política do PT e do governo e os interesses da oposição não permitem a paz. O cenário, que era de intolerável aparência de bonança, entornou por mais uma vez, e nova tempestade se avizinha e, a depender do resultado de 2006, talvez invada 2007.

Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, Doutor pela PUC-SP e Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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