Toques de recolher na guerra sem fim
Carlos Alberto Furtado de MeloOs últimos solavancos serviram para mostrar que a política persiste e sua racionalidade – mesmo pressionada pela economia – ainda obedece à sua própria lógica. Desta forma, pode-se dizer que é muito provável que Antonio Palocci tenha vencido mais uma batalha – na mídia, sobretudo. Mas em todas as frentes, a guerra, mais latente ou mais explicita, permanece e assim será por muito tempo ainda. Ninguém deve se enganar com, circunstanciais, toques de recolher.
A oposição, com receio de ser responsabilizada pelos efeitos econômicos da carga sobre o ministro, resolveu amaciar e apenas promoveu um recuo tático influenciada pela aflição que atormentou o mercado financeiro. O raciocínio é simples: se o governo perder a credibilidade fiscal, perderá também o controle da economia e as conseqüências são elementares. Fora do controle, o desastre pode não se limitar apenas a este como também afetar o próximo mandato. A terra arrasada não interessa a quem acalenta a possibilidade de herdá-la. Assim, se juntarmos a fleuma e a polidez do ministro à “indolência providencial” e pragmática dos oposicionistas, teremos, mais uma vez, uma eficiente performance palociana diante de deputados, câmeras e flashes.
Também a divulgação dos números da pesquisa CNT-Sensus parece ter contribuído para a isto; para a mal disfarçada boa-vontade da oposição – em tudo diferente do que aconteceu na CPI, no depoimento de Paulo Okamotto. Se a intenção era atingir o presidente, a oposição pode, neste momento, comemorar. Nem foi preciso ir tão fundo na economia. A desaprovação em quase 50% e a aprovação em menos de 50%, demonstram um Lula, momentaneamente, capenga. De tal modo que a oposição, nesta ocasião, não tinha motivos para espanar os parafusos do ministro. Até nova avaliação, a pressão do último mês foi o suficiente. No mais, é monitorar os números do presidente. Quanto a Palocci, saiu-se bem de fato, mas quem ainda dá as cartas no parlamento é a oposição. Se a “CPI do Fim do Mundo” (dos Bingos) contemporizou e aprovou “apenas” o convite ao ministro (e não a constrangedora convocação), o fez por moto e avaliação próprios e não pela força do Executivo. A desarticulação do governo no Congresso, ninguém se iluda, continua a mesma.
Já no front interno, a ameaça do pedido de demissão do ministro serviu de contenção também para o fogo amigo; a reticente resposta à questão sobre se haveria pedido ou não demissão ao presidente foi golpe de mestre. Com o mercado em rebuliço e com a hipótese de a mídia voltar a apoiá-lo – as estórias de Ribeirão arrefeceram, não? – a demissão faria do “desenvolvimentismo eleitoral” o algoz do ministro e o responsável por todo e qualquer risco daqui por diante. O próprio presidente Lula, num risinho amarelo, pode ter percebido que ventos semeia nas cizânias que costuma cultivar. Se Palocci cedesse seria seu fim: questionado eticamente pelos tempos de prefeito, o ministro não poderia também admitir, mais que a flexibilidade da política, envergar-se a ponto de que se lhe quebrasse a espinha da imagem construída desde 2002. Terminado o governo, sobraria a figura daquele que se calou diante de um obscuro Rogério Buratti; daquele que se dobrou às pressões por gastança; daquele que capitulou. Que futuro político lhe restaria? O mandato do presidente Lula se vai, mas sobram as perspectivas do ainda jovem doutor Palocci.
Para tentar entender o rolo: o clamor pela “flexibilização fiscal” desses últimos dias não parece residir nos números de 2005. Estes estão dados. O conflito pode consistir na disputa pela construção do superávit de 2006, isto sim. Sem o apoio da classe média, da mídia e dos petistas decepcionados, a quem Lula recorrerá para fazer a campanha da reeleição? Depositar as esperanças no povo desorganizado, beneficiado pelo programas e políticas suplementares, seria uma sandice, pois esse setor, no Brasil, é dificilmente mobilizado. Esperar por um apoio decisivo do mundo financeiro seria solução? Nem rima. Se a política econômica pode ser a mesma, um governo menos idiossincrático e melhor resolvido internamente poderia ser mais proveitoso: quando as opções giram em torno de Lula, Alckmin ou Serra, todos os gatos são mais ou menos claros e mais ou menos assimiláveis. Para quê se preocupar com isso se os fluxos internacionais garantem o resto? Assim, talvez Lula não tenha alternativa que não seja se articular com setores corporativos (do Estado e dos sindicatos em geral), com movimento social, assim como com setores protecionistas da indústria e do setor exportador (que miram suas críticas nos juros e no câmbio). Ora, é daí que podem proliferar as pressões por gastos prejudiciais a qualquer compromisso de superávit primário e por mudanças no modelo de política econômica. Como se sabe, o superávits são construídos no corte de despesas, no mês a mês, na administração de cada demanda, na obstrução de cada processo. Acreditar que o superávit de 2006, um ano eleitoral, está garantido a priori não parece ser apenas uma imprevidência, mas também uma ingenuidade.
É evidente que Palocci não desconhece as limitações da candidatura do presidente. O ministro é, antes de tudo, um homem da política. Mas, sua primeira expectativa repousa na esperança de um relevante e consistente salto econômico no próximo ano. Por isso não pára de repetir índices positivos e já não divide, com os governos anteriores, os louros do que chama de “processo”. Ainda assim, sabe que isto pode ser pouco e “flexibilizar” talvez seja mesmo inevitável. Todavia, essa flexibilização é quase uma arte; carece de cuidado, jeito e uma autoridade incontestável que possa estabelecer limites, tempos e movimentos. Não é por outro motivo que o ministro tem exigido de Lula que sua autoridade seja recomposta após a descompostura pública que lhe passou a ministra Dilma Roussef. Somente deste modo, os interesses eleitorais poderiam ser equacionados por uma ação mais incisiva do ministro também no controle dos gastos. A crise, aliás, tem servido ao fortalecimento do discurso palocista de que o aumento de recursos para investimentos e custeio deveria surgir, antes, do zelo e da melhor qualidade dos gastos do que da liberação de mais verbas. Neste compasso, logo-logo estaria controlando cada ministério, articulando suas políticas e definindo prioridades, o que compreenderia acumular, de fato, ao lado da Fazenda, também a Casa Civil, o que é inadmissível no governo, no PT e entre os aliados de Lula. Palocci seria aquilo tudo que Dirceu sonhou e não foi: seria maior que o presidente. Para isto, por cima de quantos cadáveres (políticos) teria que passar?
Logo, a guerra não acabou. No que se refere à oposição, ela pode voltar à carga a qualquer momento, pois sequer se comprometeu com a trégua. Basta acionar os mecanismos de denúncias ao menor sinal de recuperação de Lula. No que tange ao fogo-amigo, este se reacende em labareda com qualquer brisa, pois o ministro, paradoxalmente, também é frágil. Tornou-se uma figura pública de proa, mas não reúne grandes apoios nem no governo e muito menos no PT e, se lhe retirarem a simpatia da mídia e a boa-vontade da oposição... Bem, nos últimos dias viu-se o que isto significa. Assim, os adversários permanecerão de prontidão, buscando a flexibilização e um naco do poder de Palocci. Quanto a Lula, a maior possibilidade é que venha, agora, a adular Palocci, buscando, contudo, uma alternativa de conciliação, tentando impedir-lhe a expansão em tão elevada medida. O presidente sabe que precisa do ministro e que os substitutos que tem em vista – qualquer um deles – seriam sub-ótimos se comparados ao ex-prefeito de Ribeirão. Palocci, hoje, é o máximo de mercado que o PT aceita e o máximo de PT que o mercado admite. O jogo está travado. Mas, por outro lado, o presidente precisa pensar em sua eleição e em contemplar todos os grupos interno, que afinal, organizarão as suas bases de 2006. Não poderá ficar sentado à beira do caminho, ainda que ao se mover traga todo o risco dos atropelos de que tem sido o responsável.
No mais, o presidente terá, agora, que resolver o “Problema Dilma”. A ministra foi para o embate direto; tem apoio interno, mas perdeu na sociedade. Notoriamente, faltou-lhe habilidade: ao chamar Palocci e sua equipe de rudimentares ampliou a crise. Quis aproveitar o mau momento, mas acabou transformando o adversário em vitima e foi tachada, correta ou incorretamente, de oportunista. Dilma sentia-se resguardada por uma plêiade de ministros que querem ver Palocci pelas costas, mas ninguém – a não ser o presidente do PT e o vice-presidente da República – veio em seu socorro. Esses, no entanto, não contam: o PT há muito não apita e o apito de José Alencar, por constante, deixou de ser ouvido. Também pelo presidente deveria sentir-se, no mínimo, estimulada. Mas fica claro – não se sabe se também a Lula – que o presidente tem apenas duas alternativas: ou submete-se ao tratamento de Palocci ou corre o risco de agonizar com Dilma. Se tudo ficar, no mínimo, como está a ministra sai publicamente chamuscada; se Palocci se fortalecer, a ministra se desmoraliza, tendendo a passar o resto do governo, se ficar, fazendo muxoxo. Como não é de seu feitio, o mais provável é que continue tensionando, pelo menos internamente. Logo, a política ainda pulsa e a luta continua!
Carlos Alberto Furtado de Melo, cientista político, Doutor pela PUC-SP, professor de sociologia e política do Ibmec São Paulo.

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |