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A terceira margem do rio: José Serra

Carlos Alberto Furtado de Melo

 

Nessa conjuntura tumultuada, é necessário olhar também para outros lados; buscar outras paisagens e processos, identificando a terceira margem do rio onde “os tempos mudam no devagar depressa dos tempos” (Guimarães Rosa). Nessa margem está a disputa no PSDB e a figura de José Serra. No fim de semana prolongado pelo feriado da Proclamação da República, o prefeito deu o ar da graça em diversas aparições, como que na tentativa de “se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”. Neste caso, pode-se dizer que Serra se meteu em duas canoas distintas, mas complementares; coerentes com uma mesma obsessão: a disputa pela presidência da República. No mesmo dia, participou do “Quadro do Chapéu”, no “Programa Raul Gil”; e concedeu longa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

Na TV, atirou-se aos braços do público popular, sua maior fraqueza. Com a contribuição do apresentador, comunicou-se de um modo que em 2002 seria inimaginável. Falou de futebol (Palmeiras e Corinthians), família e Mooca. Preocupado com a educação dos pobres, revelou lecionar, uma vez por semana, aulas na escola pública municipal; mostrou o que fez no ministério da Saúde e as providências que vem tomando no âmbito do município. Criticou o governo federal e não “tirou o chapéu” para o “Programa Fome Zero”; demonstrou credenciais ideológicas fazendo a mesura a Bill Clinton e recusando-se fazê-lo a George Bush. No mais, a esposa, o neto e as tias mostravam que “era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino” o prefeito até pareceu ser um sujeito simpático.

Noutra frente, para outro público, abriu o gabinete para longa entrevista ao jornalista Paulo Moreira Leite. Nas fotos, ao fundo, uma cama, onde notívago, entre um tranco e outro nos auxiliares, “descansa” (sem cochilar). Triste sina de quem muito trabalha; ossos do ofício; e assim se fixa uma imagem. De todo o modo, o que salta aos olhos é o fato de que Serra está, definitivamente, na rinha da disputa tucana. Enxerga-se não apenas a disputa pela legenda, mas a visão econômica, a discussão de um projeto. Pareceu evidente que pretende, além da classe média, “conversar” com a base tucana, com formuladores do partido e uma parcela do empresariado. Desancou os juros altos, declarou que mais que economizar, é preciso saber gastar. É o técnico e o político; o ministro da Fazenda do seu eventual governo.

A entrevista merece ser lida na íntegra, mas as críticas que o prefeito-candidato faz à atual política econômica e aspectos do que poderão ser sua orientação discursiva durante a campanha, a que se propõe, ficam claros nos seguintes trechos:

“A luta pelo equilíbrio fiscal é importante. Mas a execução orçamentária é muito falha. Basta ver o que foi para a aftosa. A verba que se destinou ao Fundo Nacional de Segurança é absurda: gastaram 4% ou 5%. Essas falhas são um problema do conjunto do governo. Às vezes, saber gastar é mais difícil do que saber economizar. Aquilo que você cortou está cortado e pronto. Já os gastos precisam ser bem planejados e não podem atrasar. (...) O Brasil deve crescer apenas 3,% ao ano, o que corresponde a apenas dois terços do crescimento mundial e menos da metade do crescimento dos países emergentes. [Por que isso ocorre?] A origem está no câmbio sobrevalorizado e no juros altos. Produziu-se uma política econômica que terá conseqüências adversas no futuro. O câmbio terá de ser corrigido um dia. Essa correção envolve custos e riscos. Não é o governo que fará a correção. É o mercado. Mas é sempre uma opção que envolve desafios, pois pode pressionar os preços. E aí você faz o que? Sobe de novo os juros para impedir a volta da inflação? Se você tivesse uma política de juros declinantes teria um câmbio diferente. Reportagem da Folha mostra que a desvalorização do dólar no Brasil foi a maior da América Latina: 17%. Não há país que se desenvolva com juros estratosféricos e câmbio supervalorizado. A China, a Índia crescem na direção oposta. Falam muito do milagre chileno. Mas a virada da economia deste país, entre 1983 e 1987, ocorreu com o câmbio desvalorizado em 50% em termos reais. (...) Hoje se diz que é preciso juros siderais, se não teremos a volta da inflação. Mas se baixar os juros e corrigir o câmbio gradualmente, terá mais investimento voltado para exportação, mais crescimento e mais emprego. (...) Tirando interesses, ideologias e outros fatores, os juros permanecem altos porque se tem receio de que não se consiga transitar para outra situação de equilíbrio. É como a pessoa que olha para a outra margem do rio e teme ser levada pela correnteza (O Grifo é meu). A taxa de juros não tem influência só na atividade econômica. Ela desequilibra o setor público. Mesmo assim, não dá para fazer uma política irresponsável e fazer redução brusca de uma hora para outra. É preciso sensatez e perícia” (O Estado de S. Paulo, 13/11/05, páginas A12 e A13).

A ministra Dilma e setores do PT, talvez, assinassem embaixo. A propósito, o prefeito não deixou, ao seu modo, de reverenciar José Dirceu, reconhecendo seu “espírito de luta como um ponto positivo”, ainda que admitisse “o risco de dizer uma heresia”. Nas entrelinhas da entrevista o que se encontra é um candidato mais à esquerda que Lula e que qualquer outro candidato, à exceção de Heloisa Helena, é claro. As distâncias entre Serra e Palocci ficaram claras tanto quanto ficaram explícitas as diferenças com os tempos de Pedro Malan.

Já em relação a Geraldo Alckmin não se pode afirmar o quanto o prefeito se dissocia. Ainda é um enigma para todos ao que veio e o que pretende o governador paulista. Diz-se que é um empreendedor, fazedor de obras, que promoveu o desenvolvimento do estado e que tem a “cabeça no lugar”. Mais não se diz. O governo do estado de São Paulo, de fato, passou por inúmeras transformações nos últimos 11 anos e Alckmin espelha essas mudanças. Ainda assim, não parece ser possível definir exatamente o que vem a ser obra de Alckmin e o que é de responsabilidade da exaltada (em todos os sentidos) teimosia de Mário Covas. Candidato a candidato, o atual governador granjeia apoios entre o empresariado com um jeito mineiro de fazer política. Tem – com a parceria de sua simpática esposa – ocupado vasto espaço nas capas de revistas. Mas, ainda assim, ao contrário de Serra não se lançou às águas turbulentas do rio; não esboçou um projeto, não demarcou um postulado econômico sequer além da exageradamente ampla afirmação do “desenvolvimento com responsabilidade fiscal”.

A entrevista de Serra o instigará a fazê-lo, pois, bem ou mal, o prefeito principiou um movimento de estabelecimento de marcos políticos e econômicos claros que deve repercutir entre os tucanos de todo país. Nada parecido com a “continuidade sem continuísmo” – paradoxo, jogo de palavras, ambigüidade – que a condição de candidato do governo (FHC) lhe impôs em 2002. Dono de um cargo de enorme visibilidade, Serra ocupará todos os espaços que, naturalmente, se abrirão a sua frente. Formulador, proporá um debate e um tipo (duro) de utopia social-democrata às bases. Quanto ao compromisso de permanecer prefeito, saiu-se com uma pérola: foi “a verdade do momento”. Considerando os últimos exemplos – “esqueçam o que escrevi”, de FHC; e “esqueçam o que falei”, de Lula – Serra foi, no mínimo, mais criativo.

Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de sociologia e política do Ibmec São Paulo.

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