A hora e a vez de Antônio Palocci
Carlos Alberto Furtado de Melo
Os amigos do passado são incômodos e já não querem muita camaradagem. Aliás, muito pelo contrário; parece haver uma rixa pessoal como pano de fundo. Os companheiros do presente querem seu couro; aproveitam a agonia do vivente para surrupiar-lhe os bens. Os adversários, bem... Os adversários são adversários e se, algum dia fizeram supor o contrário é porque lhes era conveniente. Assim, Augusto Matraga, personagem de Guimarães Rosa, que era o dono do lugar, o homem mais temido daquelas veredas, foi traído pela esposa e emboscado pelos próprios capangas. Debaixo de paus, “fechou os olhos, de gastura, porque sabia que capiau de testa peluda, com cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para juntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança”. Pode ser que sobreviva, mas também pode ser que não. Como disse Guimarães Rosa, “cada um tem seus seis meses”. O certo é que parece ter chegado mesmo a “hora e a vez” de Antônio Palocci.
Os problemas são vários e o ministro vai se tornando um feixe de diversos interesses e de distintas maledicências. A oposição quer atingir Lula e já não se importa com o seu destino; traz fantasmas do passado ao presente para inibir o futuro. Se o preço da agonia do governo for o rompimento com o fleumático doutor, pois então, que se pague. No mais, a economia – neste momento –, é problema de Lula. No que vai dar, se vê depois. No PT e no governo, a discordância e o ressentimento foram guardados na geladeira para ocasião mais oportuna, como a presente. O certo é que nunca foram esquecidos. As vozes desenvolvimentistas – primeiro ignoradas, depois sufocadas – não foram eliminadas. Aquele mingau, que continuou sendo a agenda oculta do partido, agora toma nova consistência diante da nova direção. Mesmo internamente, sempre houve grande controvérsia: o esforço fiscal se viu como baldeando um oceano com a mão, diante da política monetária. Para alguns, os juros põem a perder a economia do Tesouro.
Com seu jeito de médico homeopata, Palocci supôs que a febre curasse o doente, mas o quadro parece ter se complicado em virtude de um ataque de vírus oportunistas, protozoário muito comum na política. Ainda assim, é cedo para dizer que apenas um milagre possa salvá-lo. É justamente a dificuldade de substituir Palocci que pode preservá-lo, por uma série de questões, a saber:
1) Como temos repetido, substituir o ministro por Murilo Portugal ou Marcos Lisboa é mesmo piada de português: colocar um ex-tucano ou um acadêmico desvinculado da política no comando da economia seria impensável para o PT; além do mais, para manter tudo como está, melhor fazê-lo com Palocci;
2) Um nome “mais” petista, evidentemente, agradaria ao partido, mas assustaria o mercado, causando turbulências e aumentando a incerteza. Para conter o misto de precaução, risco e especulação, o novo ministro teria que fazer tantas concessões aos agentes econômicos que, em perspectiva, nem petista e nem desenvolvimentista seria mais. Tal como Palocci, em pouco tempo seria estigmatizado pelas fileiras do partido;
3) Por outro lado, o cenário de “pequenas e negociadas inflexões na economia”, diminuindo juros e “vitalizando” o desenvolvimento, assustaria a oposição muito mais do que já parece estar assustada com as perspectivas presentes, o que não diminuiria os ataques e, até, elevaria o tom das críticas. Se for para ficar como está, ou para melhorar para o PT, melhor ficar com Palocci;
4) Nomes como Paulo Bernardo e Aloizio Mercadante, além de controversos (o primeiro ao PT; o segundo ao mercado) rapidamente se transformariam em alvos das CPIs e da mídia – Bernardo é acusado de participar do “Caixa 2 do Paraná”, quanto a Mercadante, é bom lembrar, sua campanha foi realizada por Duda Mendonça, cujo pagamento, por sua vez, teve as digitais de Marcos Valério. Enfim, até provarem que estão limpos, estariam enredados nas mesmas teias em que Palocci se encontra.
Isto, é claro, não significa que a permanência de Palocci no governo seja “fava contada”. Nessas horas, questões pessoais sempre pesam, além do que, quando os fatos assumem dinâmica própria, a política torna-se um jogo de dados. Seu depoimento no Senado pode ser satisfatório, mas há sempre possibilidade de um tropeção, como aquele, histórico, de Luiz Carlos Mendonça de Barros, em 1999. De todo o modo, se ficar, pode até continuar forte – dependerá muito da qualidade do seu depoimento –, mas, por outros motivos, isto é o menos provável.
Por tudo, pode-se intuir que o ministro não mais estará desobrigado a fazer concessões aqui e acolá. Esta, inclusive, parece ser a natureza queda-de-braço oculta que mantém com os demais aliados (Renan Calheiros, por exemplo) e, em particular, com o próprio presidente. Lula, evidentemente, pretende mantê-lo no cargo, mas seus sinais são dúbios de modo a retirar a “autonomia” que o ministro conquistou, inclusive em relação ao presidente. Viu-se que a reprimenda à ministra Roussef foi menos que branda, ao mesmo tempo em que o gesto de “prestígio” ao ministro demorou mais que o conveniente. Lula poderia tê-lo feito no seu programa semanal de rádio, mas preferiu instigar os tucanos rememorando, extemporaneamente, o “Apagão”. Não se discute o prazer pessoal de Lula em molestar os tucanos, mas, convenhamos, havia assunto mais importante a tratar naquele momento. Lula demorou e, antes que tudo entornasse de vez, teve que correr do prejuízo que começou a lhe parecer inevitável.
Qualquer que seja o desfecho do imbróglio, é claro que Palocci sai enfraquecido: não conta mais com a blindagem da oposição e da imprensa; isto rarefez o medo de companheiros de partido e governo, assim como estimulou a indiscrição de antigos colaboradores. No que tange ao presidente, a distância dos primeiros dias deixará desconfianças em entre ambos e no mercado financeiro. Enfim, parece mesmo ter chegado a hora e a vez do desgaste de Antonio Palocci. O certo é que, se continuar no governo, não terá mais com a invulnerabilidade de tempos recentes. Será apenas o ministro possível, num quadro de diversas impossibilidades; sem condições ideais. Mas, afinal, o que é isso, se tudo no país, na política e no governo parece estar mesmo distante do ideal?
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP e professor de sociologia e política do Ibmec São Paulo.

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