O dado inconcreto
Carlos Alberto Furtado de Melo
Ao contrário de 2002, a eleição deste ano pode apresentar vários e até divergentes caminhos para o país. Se na eleição passada havia uma agenda fechada, definida como consenso entre os principais candidatos, hoje já não é exatamente assim. Em 2002, os candidatos se mostraram cautelosos diante do dado concreto que era a provável reação do mercado financeiro em face do menor vacilo; a Argentina era um fantasma e o risco-Brasil estava nas alturas; até Ciro Gomes e Anthony Garotinho douraram pílula. Hoje o clima é outro: há uma aura de otimismo, o risco-país teve queda histórica e já se fala, até, em investment grade – um luxo que parece descolado da real e objetiva situação política.
É justamente pelo fato de o cenário ser outro que se permitirá um arrebatamento discursivo na eleição. A própria dinâmica política, os alinhamentos, os apoios e compromissos de campanha é que devem definir o quadro eleitoral. Em 2006, há uma tendência de polarização mais aguda entre a flexibilização da presente política econômica – com laivos de populismo macroeconômico – e o aprofundamento dessa mesma política vicejando um processo de reformas mais profundas. Entre uma e outra alternativa há uma gama de opções.
Como se sabe, os escândalos de 2005 e a crise não permitiram aprofundamento de reformas estruturais. O Congresso foi fonte de permanente turbulência e a imprensa, naturalmente, focou quase que exclusivamente a desgraça do PT. A sociedade – e o mercado aí incluso – acomodou-se com o suficientemente bom e não pressionou por maior determinação reformista. A agenda parlamentar estacionou no ramerrão de denúncias que anteciparam o calendário eleitoral e, afora iniciativas parciais, quase nada de significativo teve andamento. Com isso, em 2005, a política econômica ficou pelo meio do caminho, incompleta, solitária, enjeitada. A impossibilidade de transformação completa do estado brasileiro – nova rodada na previdência, reformas trabalhista e tributária, revisão do pacto federativo e reforma gerencial da máquina, além de uma reforma política, é claro – fez da política monetária um órfão violento e questionado. A taxa de juros, até onde conseguem explicar os economistas, virou instrumento único para conter a inflação ao custo de refrear o crescimento. Em 2006, portanto, ao lado da ética, a política econômica será questionada. E no que isto pode dar?
Há um cardápio para todos os gostos. Alguns setores simplesmente rejeitam o que chamam de neoliberalismo: tudo está errado, logo tudo deve ser mudado. O problema seria a ilusória “falta de vontade política” e, ademais, nesta visão foi a traição de antigos compromissos “distributivos” que puseram o PT na presente sinuca. Outros a enxergam como o mal necessário, o remédio amargo para a “herança maldita”, que deve, agora, simplesmente ser abandonado. Já supostamente “em perfeita ordem”, resta ao país investir e criar, por ato de vontade, “o espetáculo do desenvolvimento” – baseado num discurso cômodo e anti-reformista. Há também os que entendem que essa política precisa ser superada, que outros desafios são importantes. Uma vez consolidada a estabilidade da moeda, os juros devem baixar por decreto e ponto; o câmbio também deve ser alterado. Por fim, existem os que acreditam na necessidade do aprofundamento das reformas de modo a complementar o esforço macroeconômico e a reforma do estado.
Curiosamente, não há um alinhamento claro de todas essas correntes. Estão em todos os partidos, inclusive, se não, sobretudo, na base do governo. Assim, a maior incógnita eleitoral deste momento está, ironicamente, na candidatura do atual presidente da República que, em tese deveria expressar um programa já claro e do conhecimento de todos. A incógnita nada tem a ver com a possibilidade de Lula não se candidatar. Está mesmo na indefinição de projetos e rumos. De modo que se aconselha não acreditar em quem afirmar saber os caminhos que o presidente trilhará na próxima eleição e num eventual novo governo. Tudo depende. Depende da roda da fortuna, depende da interação social, depende do desenrolar dos fatos, depende da maior ou menor dependência de Lula em relação às forças que eventualmente o apoiarão.
Certamente, a amplitude política e eleitoral de Lula será muito menor que em 2002. Antes da crise, o cenário de sonho seria chegar à eleição com os votos do último pleito e mais alguma coisa; ganhar no primeiro turno. Bastaria garantir o apoio das bases tradicionais do petismo – sempre ao redor dos 30% dos votos; mais o reconhecimento dos mais pobres, beneficiados pelos programas sociais, e ainda o apoio entusiástico dos setores médios urbanos, reformistas, social-democratas – o eleitorado do PSDB, por excelência. Mas o valerioduto sorveu essa quimera. Os apoios tornaram-se voláteis à esquerda e escassos ao centro.
Por tudo o que tem dito, fica mais ou menos claro que a aposta de Lula, no momento, consiste na valorização de seu carisma pessoal e na realização de bons resultados econômicos. Não é por outro motivo que em recente entrevista Lula jogou o PT às feras, afirmando que o partido – e não ele – sangrará para recuperar a credibilidade, atribuindo culpa exclusiva aos maus petistas que não têm nome. Candidatíssimo, não quer se contaminar com o sangue da estrela vermelha e, por isso, lavou as mãos. Acreditando ser maior que a legenda e também a única alternativa do partido, tentará construir suas alianças e campanha com base na autonomia programática. Ao que parece, é com este cenário que o presidente e seu staff trabalham neste momento. Naturalmente, terá inúmeros conflitos com setores do PT, mas o carisma de Lula conduz e o partido, se tiver juízo, se deixa conduzir.
Mestre da ambigüidade, será com a defesa de seu governo, na comparação com o anterior, e com as promessas mais desencontradas que Lula seguirá em frente: prometerá o céu na terra “com responsabilidade fiscal”; o “desenvolvimento espetacular“ com os juros que o COPOM lhe permitir. O paraíso estará em algum lugar, depois da eleição. Ao mesmo tempo, o governo torce por melhores dias na economia. As apostas (ou chutes) de “5% de crescimento”, neste ano, e a promessa do não aumento da gasolina fazem parte, desde já, do clima que se quer na campanha. Aliado aos R$ 28 bilhões para investimentos – que dificilmente conseguirão ser gastos – o neo-ufanismo dará o tom do discurso oficial, surgindo daí a percepção de que chegou a “hora da colheita”. A ministra Dilma, avalizando projetos e liberando verbas, será o outro lado da mesma moeda em que a figura do ministro Palocci está estampada.
Se, com isso, eventualmente vier a vencer a eleição, Lula não terá base parlamentar automática, mas as forças políticas ficarão prostradas e na estupefação tudo se ajeita. Além disso, o presidente não terá débitos com ninguém. Neste caso, livre dos compromissos partidários, poderá fazer o “chamamento à nação” que não conseguiu fazer após o caso Waldomiro Diniz. Selecionando e juntando os cacos do PT, poderá iniciar a reforma política e partidária aproximando-se do centro. A política que implementará dependerá do arranjo das forças que conseguir juntar depois da eleição, é óbvio. Mas não se pode descartar que com tamanha liberdade, possa até optar pela agenda que ficou perdida em 2005. Há, é evidente, o risco de uma estratégia reformista por meio da via personalista e autoritária. Mas seria desperdício de tempo, neste incipiente momento, especular em torno disto.
Este, aparentemente, é o cenário esperado pelo presidente, diante das circunstâncias em que se encontra. Mas não apenas é incerto como de enorme dificuldade. Seria preciso combinar com muitos russos, além de imprescindível que Lula expressasse liderança e clareza tamanhas capazes de indicar rumos, algo que, mesmo no auge da popularidade, o presidente não se mostrou capaz.
Mas, como disse acima, a dinâmica da campanha estabelece seus próprios caminhos. Se a ambigüidade não funcionar, Lula terá que fazer as suas escolhas e apostar num só lado – algo que nunca gostou de fazer. Assim, diante das portas eventualmente fechadas ao centro, o flerte à esquerda será inevitável; afinal, na baixa, quem fará sua campanha? “A nostalgia do PT de ontem” será a trilha sonora do horário eleitoral. Nesse momento é possível que configure um discurso defensivo e classista, estabelecendo alianças mais críticas à continuidade da própria política econômica que adotou. Mais radical (ma non troppo), empunhará a bandeira da “conspiração das elites”, do “boicote da mídia”. Um palanque à lá Chaves, pero no mucho – a sociedade brasileira é mais complexa, além do que, faltará ao Brasil uma PDVSA, que garanta todo tipo de bravata, como é o caso da Venezuela.
A temperatura política subirá, sem dúvida, e ficará no ar a impressão – de difícil comprovação – de que o país foi para o tudo ou nada. É improvável que consiga êxito, mas se ganhar a eleição levará no embornal a conta os compromissos com as bases. Estará refém dos movimentos, doa agrupamentos e das promessas, aos quais não poderá renegar novamente. Evidentemente, o ministro Palocci some de cena. O segundo mandato de Lula poderia, dessa forma, apresentar alguma semelhança com seu colega argentino, Néstor Kirchner. No limite de seu personalismo e da correlação de forças que o elegeu, o presidente arbitrará naquilo que puder o tensionamento entre as imposições de uma economia globalizada e as exigências de bases nacionalistas e protecionistas. Um mandato, digamos assim, certamente mais controverso que o primeiro.
Logo, no que tange ao campo governista, não há um único caminho, como se vê. O candidato, preferencialmente e se as condições lhe permitirem, pode optar pela carreira solo, baseado em seu carisma pessoal. Assim como, assim pode não lhe restar alternativa que não a de se render às circunstâncias e aos aliados que lhe sobrarem. Lançando mão de uma expressão da qual o presidente usa e abusa, “o dado concreto” é que nada ainda é concreto; o dado é inconcreto. As alternativas se definirão com o andar da carruagem e o ajeitar das batatas. De oito aos oitenta, neste momento, a eventual campanha de Lula localiza-se entre populismo e a reforma de verdade. Só o tempo e a política decidirão.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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