Querelas do Brasil
Carlos Alberto Furtado de MeloSejamos justos, as desavenças em torno da polaridade “desenvolvimento e estabilidade” não são exclusivas do petismo e muito menos dos ministros Dilma e Palocci. Trata-se, há décadas, de um debate intermitente. A polêmica já aparece quando Ruy Barbosa era uma espécie de “Dilma Desenvolvimentista” de sua época e Joaquim Murtinho um “Palocci Monetarista Belle Époque” (governo Campos Salles). Na década de 40, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin assumiram, respectivamente, os papéis da defesa do desenvolvimento e da estabilidade; nos anos 70, outro Simonsen, Mário Henrique, veio à cena no lado oposto: esgrimia a tese da estabilidade contra João Paulo dos Reis Velloso (Governo Geisel) e Antônio Delfim Netto (Governo Figueiredo).
Mais recentemente, também os tucanos se enredaram na mesma desinteligência: Pedro Malan (Fazenda) se desdobrou para responder a José Serra (Planejamento e, depois, Saúde) e Luis Carlos Mendonça de Barros (Comunicações).No governo Lula, antes de Dilma, José Dirceu e José de Alencar (desde sempre) já empunhavam a bandeira do desenvolvimento contra os juros altos e a maior restrição de gastos. Seja na democracia ou na ditadura, essa quizila não esmaeceu. Houve sempre o embate; o contraditório no seio dos governos e dos partidos do governo. Quase todos, se não todos, antecessores de Palocci duelaram de público ou entre quatro paredes. O inferno de cada um foi mesmo os outros.
Os parágrafos acima não constituem novidade. Mas há algo que intriga: que força é essa que imortaliza esse debate? Governo vai, governo vem e a discordância sobrevive ou, antes, ressuscita. Com regularidade espantosa, o assunto volta à cena, agita a mídia, anima a indústria, aterroriza o setor financeiro, paralisa o governo e estabelece uma polêmica que há muito estaria superada houvesse força política capaz de enfrentá-la. Do ponto de vista político é preciso responder a questão: que energias dão força a essa polêmica, evitando sua superação?
Estruturalmente, as causas deste fenômeno parecem residir na nossa formação social. No Brasil, não foi a sociedade que constituiu um Estado. Obra de uma nobreza omissa e distante, o Estado veio embarcado e somente depois de sua chegada é que se constituíram os primeiros rudimentos da formação do que se pôde chamar sociedade. Nossa “herança rural” consolidou a idéia do Estado pai e patrão, qual o patriarca. De resto, a elite – por displicência ou por esperteza boçal – omitiu-se da construção do edifício capitalista, esperando, na boca da botija, as oportunidades de lucrar sem risco. Por muito tempo, os grandes investimentos, a promoção do desenvolvimento e a condução da sociedade couberam apenas ao Estado. O povo, disse Darcy Ribeiro, era “ninguém”.
A opção pela via estatal não é má por princípio. Dentre tantos outros tipos de acumulação primitiva, poderia promover saltos qualitativos, progressivos e autônomos da sociedade. Fosse republicana e eficiente, vá lá: as sucessivas gerações pagariam a dívida, mas receberiam o bônus. Mas não foi assim. Pensadores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro nos ensinaram o sentido de expressões como patriarcalismo e patrimonialismo. No processo – ou antes, desde sempre –, o público foi apropriado pelo privado, o Estado foi tomado por cartórios e corporações. O povo, bestificado, não foi convidado para a festa. Ficaram as raspas e os restos das políticas complementares. O crescimento foi tão rápido quanto frágil. O mal maior nem foi o endividamento. Como se diz, “dinheiro com saúde se ganha”. O terrível foi essa estrutura política e administrativa doente, viciada e inoperante que ficou. Afinal, no Brasil, para quê mesmo serve o Estado?
As escolhas do passado cobram altos juros e duríssimos ajustes no presente. Assim foi e o termo ”fiscalista” passou a ser entendido como um depreciativo da ação de economistas sadicamente desumanos. Sua ortodoxia fiscal e monetária seria a radicalização – politicamente e socialmente inconseqüente na visão de seus detratores – de uma forma de gerir o Estado, minimizando-o de um modo extemporâneo num tempo em que já se discute a disfuncionalidade da exclusão social de tão amplos setores. A crítica é feroz ao ponto de a ministra Dilma usar o termo “rudimentar” como forma de desqualificar seus companheiros de governo. A ministra, é evidente, não age de má-fé. Certa ou errada, sua argumentação nasce de uma ética da convicção presente em amplos seguimentos intelectuais dentro e fora do PT, presentes, inclusive, no PSDB.
Mas, no mercado político, a crítica nasce do cálculo eleitoral: o fiscalismo adquiriu má fama, pois corta recursos da área social; desagrada setores dependentes do Estado; arrocha servidores, prejudica cartórios; intimida financiadores de campanha e enfurece eleitores. Neurotiza o parlamentar que precisa se reeleger. Dessa neurose depende a aprovação de projetos. A economia assume um ritmo lento e irritante. As críticas brotam: o desgaste social e, por decorrência, o político e o eleitoral são evidentes. É claro que haverá choques, Dilmas e Paloccis. Os discursos tornam-se indignados. O velho nacional-desenvolvimentismo se movimenta. O velho monetarismo o desqualifica. Os players eleitorais ateiam fogo às vestes, pedem a cabeça do ministro ou a mudança já. O ambiente se reduz a um “conto cheio de som e fúria significando nada”; nenhuma alternativa clara e factível surge no horizonte. No mais, o embuste é melhor quanto mais se lhe pareça sincero.
O desenvolvimentista não deixa de expressar um ponto indiscutível: há um país desigual, as filas do INSS indignam por vários motivos, os excluídos já não podem esperar pelo longo prazo, pela gradativa mudança de mentalidade da elite e nem pelo lento e gradual ajuste do governo. Só morrerá no longo prazo aquele que conseguir sobreviver ao curto prazo. O curto prazo assusta muito mais que o futuro intangível. Descobre-se que “o medo era bom antes, quando a gente ainda tinha alguma esperança”, como disse um personagem de Sartre. Agora, sem utopia, o presente aterroriza e sequer deixa espaço ao futuro. E é nesse contexto que se impõe a segunda causa da longevidade deste debate. Trata-se da atávica ausência de liderança política capaz de estabelecer projeto claro e sem ambigüidades; aquela que arbitra perdas e constrói, com virtù, o consenso possível.
Evidentemente, a possibilidade de consenso não estará na capitulação de nenhuma das partes. Mas na conciliação possível, sem rendição. O Estado poderá, sim, promover mais desenvolvimento se aprender gastar melhor. O ministro Palocci e o prefeito de São Paulo, José Serra, já vocalizam reflexões desse tipo. Mas, a tarefa não é fácil. Afeta incontáveis interesses consolidados desde sempre. Mais que a reforma tributária, a reforma gerencial do Estado parece ser fundamental. E é possível que estejam aí – ao invés da Fazenda e do Banco Central – as maiores resistências ao desenvolvimento. Em paralelo, uma reforma educacional também é fundamental, de modo a remodelar o ensino, o conhecimento e o tipo de trabalhador. Trazer o Brasil para o século XXI.
Fácil dizer e difícil de fazer. A repetição dessas idéias já vai consolidando o clichê do clichê. Reformas desse tipo compreenderia enfrentar corporações, mas não só. Desalojar afilhados, apaniguados, esquemas de poder, alianças políticas; desprivatizar o Estado, tornando-o, na acepção da palavra, uma res pública. Uma revolução administrativa, social e política. Mas, convenhamos, o sistema político que se tem hoje, definitivamente, não comporta transformações desse tipo. Até porque o efeito mais visível dessa ousadia seria, pelo menos a princípio, a renúncia aos sonhos de reeleição.
De resto, partidos programáticos, governos empreendedores, liderança política determinada e sociedade organizada e mobilizada seriam instrumentos imprescindíveis. Erguer um novo sistema, eis o xis do problema. Mas, como fazer a reforma política com os políticos beneficiados pela política presente? Como fazê-la quando a sociedade se distancia da política por irrespirável que lhe parece ou pela enganosa irrelevância que lhe inspira? Mobilizar a sociedade, reordenar e ou fundar novos partidos... No entanto, todos parecemos muito cansados. Sem resposta, o tiroteio continua. Hoje com Dilma e Palocci; amanhã, sabe-se lá com quem. Infelizmente, o problema é muito maior que as querelas desenvolvimentistas ou monetaristas. Antes fosse só isso.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo.

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