A fácil adaptação das elites ao velho
Maria Inês NassifArtigo publicado no jornal Valor Econômico em 09 de Fevereiro de 2006
A última ditadura militar durou 21 anos. A nova democracia brasileira tem quase a mesma idade. Nessas duas décadas, a elite paulista conquistou o que havia acontecido apenas uma vez na história republicana: três mandatos consecutivos no poder. Após as eleições de outubro, a não ser que o improvável aconteça e seja eleito um outsider - democracia tem dessas coisas também -, o Estado mais rico da federação estará acumulando 16 anos de poder, com mais um mandato para o PT ou com a volta do PSDB ao Palácio do Planalto.
É um momento em que hegemonias econômica e política se concentram num único espaço geográfico. Hoje, o país não apenas se submete, mas referenda o poder de uma unidade da federação sobre as demais. Em parte, porque tem a inestimável ajuda de um contingente de eleitores que corresponde a mais de 22% do eleitorado nacional e detém 33,4% do PIB nacional. E também porque os partidos brasileiros tendem a ser congressuais e a representação paulista no Congresso é alta. Mas existem outras razões. As lideranças que se revezaram no poder nos últimos anos, e seus respectivos partidos, ascenderam ao cenário nacional na época da ditadura, consolidaram-se no período recente de democracia e são hoje o centro do poder nacional porque assumiram também o domínio das suas máquinas partidárias. É o que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos chama de "oligarquias paulistas" do PT e do PMDB.
As grandes estrelas da política paulista chegaram ao poder nacional no período militar. Foi quando se quebrou a divisão existente entre os políticos paulistas e seus intelectuais, a política institucional e o sindicalismo. A elite intelectual paulista e as lideranças situadas do lado de fora da política institucional foram compelidas a ela no movimento de resistência à ditadura. Antes disso, a visibilidade política de São Paulo era pequena. Os políticos regionais, exceto Jânio Quadros, não conseguiam furar o cerco do Estado e arrebatar o país. Outros paulistas chegaram ao poder, mas não porque tinham forte apelo eleitoral, mas por sólidas alianças. A hegemonia econômica era exercida em alianças com lideranças de fora: não se fazia um conchavo sem passar por Minas; Rio, capital federal até 61, era o espaço de articulação da política nacional, por concentrar políticos de toda federação; Rio Grande do Sul tinha importância. Os paulistas eram apenas uns caipiras: não tinham a habilidade dos mineiros, o cosmopolitismo carioca ou a determinação dos gaúchos.
A ditadura trouxe para o cenário político paulista a intelectualidade antes ilhada nas universidades; o movimento sindical explodiu no Estado mais industrializado do país com maior intensidade, movido também pela contestação política ao regime - e trouxe novamente à cena política o trabalhador urbano, que antes da ditadura teve um protagonismo extremamente dependente de uma máquina sindical dominada pelo governo. A dobradinha intelligentsia/militância poderia ter se constituído no melhor dos mundos: São Paulo, enfim cosmopolita, projetava para o país intelectuais de peso e lideranças trabalhadoras autênticas.
--------------------------------------------------------------------------------
Hegemonia paulista tem nome e endereço
--------------------------------------------------------------------------------
Se tudo acontecesse conforme rezam os scripts teóricos, 16 anos de poder nas mãos dos representantes da moderna economia seriam a fórmula mágica para limpar o país da velha política marcada pelo poder oligárquico que, aliado ao poder econômico hegemônico, sobrevive e perpetua as práticas seculares do patrimonialismo. Não foi isso o que aconteceu. Dada a fantástica capacidade de adaptação da elite dirigente brasileira ao velho, o que se assistiu foi a oligarquização da política paulista, agora convertida em motor da política nacional. E a hegemonia política paulista foi conquistada à base da oligarquização interna dos dois partidos que passaram a polarizar a política estadual e, por extensão, a nacional: o PSDB e o PT.
O PSDB foi gerado na sombra da popularidade de Mário Covas, da admiração pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso e pela tenacidade do prefeito José Serra. O domínio paulista do partido já era um dado da sua formação. E o que é curioso nessa hegemonia paulista sobre o PSDB é que ela, em essência, é personalista. Fica difícil imaginar um grupo paulista com tal poder sobre um partido inteiro se dele fossem suprimidos Fernando Henrique Cardoso e José Serra. O governador Geraldo Alckmin, que ascendeu na esteira da popularidade de Covas como seu vice no governo, não é um homem da máquina.
Mas o mais interessante é que o PT, na origem um partido de massas, não de quadros, não escapou da personalização. No início, a hegemonia interna poderia ser atribuída ao grupo de sindicalistas, e um pouco mais à frente ao Campo Majoritário - os dois grupos eram majoritariamente paulistas. Quando o partido se institucionalizou de fato, a popularidade de um líder - no caso Lula - passou a ser vital para o projeto de poder partidário. Lula foi a primeira personagem destacada do resto. A estratégia interna do Campo Majoritário para a neutralização da esquerda partidária fez donos de máquina, com nome, endereço e telefone. Outros personagens, quase todos eles paulistas. Na medida em que o Campo Majoritário passou a ser amplamente hegemônico, as disputas internas também se personalizaram. Não era mais a disputa entre um ou outro grupo, mas entre um e outro personagem.
A expressão disso é o PT paulista. Até ir para o processo eleitoral, a disputa interna estará polarizada entre dois políticos, Marta Suplicy e Aloizio Mercadante, ambos do Campo Majoritário. Não é mais uma disputa ideológica. E são os que se projetam no Estado de São Paulo aqueles com mais chances de se tornarem políticos nacionais. No PT nacional, a cara de partido que tem donos, de preferência paulistas, foi amenizada pela crise do mensalão. Antes o chefe era José Dirceu. Agora é outro paulista, Ricardo Berzoini. Mas nem de longe o novo presidente tem o poder pessoal que Dirceu dispunha.
Aí é que se percebe a fragilidade da hegemonia política paulista. A geração que resistiu à ditadura está velha. O poder político do Estado sobreviverá a FHC, Serra e Lula?

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |