Em busca da militância perdida
Maria Inês Nassif
Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 23 de Fevereiro de 2006
O uso da máquina governamental como instrumento de acomodação de interesses internos adiou o confronto do PT consigo mesmo. A crise política do ano passado, que colocou em questão também a forma como o partido ocupou a máquina governamental e cooptou aliados - uma política torta de alianças internas e externas -, apenas tirou a sujeira que já estava debaixo do tapete. O lixo partidário não data das denúncias do "aliado" petebista Roberto Jefferson contra o governo e o partido. Ele se acumula em anos de conflitos internos mal resolvidos - ou resolvidos por uma maioria engendrada na máquina partidária - e que são a síntese de uma contradição de origem.
Não é exagero dizer que o PT deve grande parte de sua capilaridade e de sua organização aos movimentos populares. Eles são o criador, o PT é a criatura. O partido foi organizado, originalmente, pelos chamados novo sindicalistas e com forte apoio da Igreja adepta da Teologia da Libertação - esta, talvez a única instituição cujos tentáculos chegam a qualquer canto do Brasil. Procure-se um grotão desse país alheio a uma comunidade eclesial de base, ou a uma pastoral. Essa Igreja progressista e capilar também está por trás de movimentos populares mais atuantes - como, por exemplo, o Movimento dos Sem Terra, constituído de uma costela da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A imbricação de Igreja e movimentos, e igreja e Partido dos Trabalhadores, tem a sua complexidade. Para entendê-la, recomenda-se a leitura do recém-lançado livro de Frei Betto, "A mosca azul: reflexão sobre o poder" (Editora Rocco). A igreja não invade o espaço do partido: o trabalho evangelizador, de base, constitui-se em elemento de reflexão. A adesão partidária ou a movimentos populares é o momento seguinte da consciência. A Teologia da Libertação recusa o trabalho evangelizador como instrumento de luta política: ele é apenas uma preparação para a luta, institucional ou não, que se organiza em torno de um partido ou movimento popular.
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Política de alianças ainda é pedra no sapato do PT
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Movimentos populares, sindicalismo e Igreja deram ao PT de origem uma forte vinculação popular e uma organicidade que nenhum partido político brasileiro teve até então, nem mesmo os comunistas. Foi esse vínculo que atraiu para si os grupos de esquerda vindos da luta armada. A convivência da base com uma "vanguarda" de esquerda produziu uma organização atípica. Até porque os intelectuais e militantes ideológicos deixavam de ser vanguarda para se subordinar a sindicalistas sem formação marxista ou a movimentos populares que não assimilavam os jargões e a cultura da esquerda, de organização centralizada e tirânica - aquele famoso centralismo democrático. O PT foi salvo do stalinismo por essa vinculação popular: a "vanguarda" tinha que brigar no mesmo espaço político que as "bases" para impor suas posições.
Isso produziu uma situação incomum tanto na história das esquerdas como na tradição partidária brasileira. O mesmo Frei Betto enumera as razões do ineditismo no mesmo livro: "[o PT] repudiou o centralismo democrático, instaurou mecanismos internos de democracia radical e evitou a subordinação acrítica a seu fundador e líder (Lula) e a retórica acadêmica dos conceitos que pretendiam servir de molde à realidade". Essa "democracia radical" ainda foi o instrumento de luta dos descontentes em todo o processo de institucionalização do partido - daí a visão externa de que o PT era um partido cindido. Na verdade, era um partido-síntese.
A transformação do partido em uma máquina de ganhar eleição não foi um processo que saiu vitorioso sem resistências. Elas foram muitas e de alguma forma foram reforçadas pela crise de 2005. O difícil debate sobre a "política de alianças" que permeou todo o período de assunção do partido eleitoral sobre o partido de massas quase que dá forma, cor e textura a esse conflito de origem. A possibilidade de aliar-se a outros partidos foi negada ao candidato Lula em 1989, em 1994 e em 1998, e apenas liberada em 2002. Ainda assim, essa foi uma vitória de uma maioria - o Campo Majoritário - que se consolidava à sombra da máquina partidária e era a artífice do processo final de institucionalização do PT. Paralelamente a essa luta interna, e em decorrência dela, descolaram-se PT e movimentos populares e PT e igreja progressista.
Os escândalos do "mensalão" foram a prova para a esquerda petista, vinculada ou não à igreja ou a movimentos sociais, de que o pecado original do partido foi a política de alianças. E hoje a direção do PT está num verdadeiro impasse. O presidente Lula exige do partido liberdade total para negociar alianças - e, convenha-se, é difícil ganhar eleição, e mais ainda governar, sem elas. Mas não é o poder que está em questão para os movimentos populares, mas o fato de que o partido, ao institucionalizar-se, deixou de ser interlocução para suas lutas políticas. O Encontro Nacional que ocorrerá em abril - uma instância para discussões programáticas -, enfrentará de novo a discussão sobre as alianças, num momento em que a reconquista dos movimentos populares passa a ser vital para a máquina partidária - sem o dinheiro que permitiu ao partido substituir uma militância incômoda pelo marketing político, a militância deixa de ser incômoda e passa a ser necessária. A resolução da reunião do Diretório Nacional mostra o recuo, do centro, onde estava o Campo Majoritário de José Dirceu, para a esquerda: "Sabemos que há, entre nossos aliados, nos movimentos sociais, nos partidos de esquerda, na militância petista e em todos aqueles que compartilham o sonho de um país livre e justo, uma preocupação sincera acerca dos rumos do partido e dos limites de nosso governo federal". Nas eleições de 2002, os dirigentes fizeram um enorme esforço para desvincular a imagem do partido de movimentos sociais radicais, como o MST. Quatro anos depois, termina um documento do Diretório Nacional rendendo "homenagem à irmã Dorothy Stang".

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