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Opinião: saudades de Elis e Nara

Carlos Alberto Furtado de Melo

10 de Abril de 2006

Num samba tão antigo quanto famoso, Zé Kétti afirma que “acender as velas já é tradição”. Era o show Opinião e foi um sucesso histórico. Produzido pelos CPCs (Centro Popular de Cultura), da UNE (União Nacional dos Estudantes), fez a cabeça de muita gente que atualmente está ou que disputa o poder no Brasil. Mas, na falta de um bom samba, o Brasil de 2006 se interessa mais pela opacidade do que encontrar velas que iluminem o ambiente político. Punir criminosos é dever de qualquer sistema institucional que se preze; mas também é necessário indicar comportamentos desejáveis. Para onde vamos? Ninguém diz e, talvez, nem possa fazê-lo. A campanha eleitoral tende a ficar na carnificina de costume. Projetos, uns poucos; muitos limitados. Estabelecer a moral é preciso, mas deixar de patinar na lama também. Pensar nas reformas econômicas, por si só, será esterilizá-las se não houver a compreensão de que elas dependerão, sobretudo, de capacidade política e de um novo tipo de liderança que parece ausente do cenário. Sem a política, não se sairá do atoleiro. A mesma canção também diz: “quando não tem samba, tem desilusão”.

O relatório da CPMI dos Correios, por exemplo, causou enorme repercussão no que se refere a quem e por que teve pedido de indiciamento ao ministério público. Mas pouco ou nenhum interesse sobrou para propostas de correção. O próprio documento feriu a lógica ao dizer que “definir a forma de combater a corrupção em um país de dimensões continentais [etc, etc, etc] como Brasil não é desafio dos mais simples, especialmente no breve espaço de tempo outorgado à ação de uma CPMI que, além da visão de futuro, deve se concentrar na apuração dos fatos passados”. Como se lê, “além da visão de futuro”. A visão do futuro, mais uma vez, fica aquém do passado.

Em vários campos e aspectos, uma nova institucionalidade parece ser necessária: uma revisão do instrumento CPI, por exemplo, seria salutar. Parlamentares investigando e julgando parlamentares não dá em boa coisa. Ou o sentimento corporativo impera ou a disputa ou a vingança comandam. Seria necessário distanciamento. Mesmo o voto secreto – que na ditadura tinha seu sentido – tornou-se escudo de pusilânimes e instrumento para toda vilania. No calor da rinha e do compadrio, a frustração parece, mais que previsível, natural do processo. Essa “nova institucionalidade”, no entanto, não surgirá por inércia ou pelo ritmo da decadência. Carecerá do enfrentamento de questões delicadas e do surgimento de novos e mais capazes atores políticos. Onde estariam esses novos atores? Os movimentos sociais, muitos corporativos, repetem o mesmo ciclo; o establishment, no conforto, preocupa-se com a economia que está sendo; sem preocupações do que poderia ser. Falta sociedade e estadismo.

Nos últimos 16 anos um novo Brasil surgiu: a economia se abriu, se modernizou e se globalizou; a sociedade, em rede, se articulou com o mundo; os meios de comunicação se multiplicaram; a democracia adquiriu mais ares de direitos individuais do que de mobilização civil. O sistema político, no entanto, se calcificou; perdendo rapidez e representatividade. Poucos parlamentares expressam respeito intelectual e alguns nem mesmo moral. Muitos não compreendem o contexto global, mais amplo em que vivem. O rincão ainda dá o tom, numa melodia que deveria ser cosmopolita. O modelo econômico não conseguiu, ainda, recriar à sua imagem e semelhança, o sistema político. Há um descompasso, entre outros fatores porque esse mesmo modelo econômico não conseguiu resolver problemas básicos. A democracia social não se instalou; logo a democracia política ainda é velha. Sem democracia social, o que se tem é política de curral.

O país avançou, inegavelmente, mas isso se deu mais por iniciativas vinculadas à pressão do financiamento público, agora nas mãos do capital financeiro, do que pela direção política. O Brasil – talvez não reste outro modo – faz seu caminho andando. Quando isso acontece, todos ficam à mercê dos buracos da estrada. O momento é de transição; mas não se pode sequer dizer que há uma boa leva de parlamentares jovens e que estamos pavimentando o futuro. Às vezes o buraco não tem fundo. Muita gente séria desistiu de se envolver com a política. As possibilidades de renovação para melhor ainda só podem ser vistas com muito ceticismo.

No mais, esse negócio de ficar olhando apenas para a equipe do Banco Central ou para a política econômica é coisa de doido ou mal intencionado. Às vezes os dois. Se o país se atém apenas a isso, administra-se o hoje, mas perde-se o amanhã. No último abalo que sofreu, Lula tratou de assegurar autonomia ao Banco Central. Fez o correto para não piorar a sangria, mas ficar nisso, no final das contas, é baldear o oceano com as mãos. O tal do “desenvolvimento sustentável” exige reformas.

Por enquanto, a posição de maior conforto é a segurança ou a ilusão. E assim, busca-se acreditar que, seja com Lula seja com Alckmin, nada vai mudar. Garotinho assusta um pouco mais, mas sua pouca viabilidade acalma. No entanto, alguma coisa vai mudar, sim. Os discursos indicam exaustão. Não dá para arriscar exatamente o quê e como mudará. Mas, ao que tudo indica, no próximo governo, o viés político vai determinar a elevação do crescimento e a diminuição dos juros. Todavia, convenhamos, se fosse por gesto de vontade, já teria sido. E se ainda não foi é porque não deu. Já se disse que “Jaboti em cima de árvore, foi enchente ou alguém colocou ele lá”. As coisas têm razão de ser. Que governo não gostaria de uma dinâmica dessas? Então, por que não fez? Não fez porque não pôde; porque faltam sistema político e instituições políticas – para além das instituições de Estado, como a PF e o BC, por exemplo – aprimoradas.

Ora, o crescimento e a queda dos juros dependerão do aprofundamento de uma série de reformas. O estado brasileiro precisa de novo e mais profundo ajuste. Todos, até os mais reativos, sabem disto. A começar por um choque de gestão, tudo precisa ser revisto. Mas não é tão simples assim. Sem tergiversar com reformas menores, vamos ao cerne: o dificílimo pacto federativo, sem o qual não se pode pensar em rever o carcará sanguinolento da tributação nacional. Mas o pacto federativo dependerá de acordo; governadores e prefeitos precisam ser convencidos ou coagidos. Deputados e senadores, que hoje fundamentam seu poder eleitoral por meio da ação do Estado, tendem a ser reativos.

É claro – por paradoxal que pareça – que o encurralamento pode nos obrigar a buscar saídas. Afinal, nesse labirinto, há um minotauro que assusta: o populismo misturado à inflação. Há de importante o fato de que não será mais possível, como dizem os economistas, fazer o ajuste “pelo lado da receita”. Ótimo, estaríamos condenados a uma fuga para frente. E assim o jeito será cortar na carne. Fazer o tal do choque de gestão implicará rediscutir a natureza do estado, rever tarefas, procedimentos, o sentido e a existência de setores, autarquias, estatais, municípios, instâncias políticas e instituições. Não é tarefa fácil. Requer destreza política para criar o consenso. Exige liderança: chuchus e metáforas de futebol não bastam.

A mão forte, como no passado, está fora de questão – a sociedade complexa não mais permite abalos que apenas agravam a situação; esse tempo passou. As soluções técnicas, por sua vez, são limitadas e virão – se vierem – depois das definições políticas. A decisão by the book; não bastará; quem ninguém se iluda. “The book is on the table” – como se dizia nos tempos de ginásio –, mas isto, sem política, não significa nada; em cima da mesa o livro ficará. O ajuste dependerá da arte da negociação, do convencimento, da construção de maiorias dentro do Congresso, mas também fora dele, na sociedade.

Mas, o atual cenário, para quem tem olhos de ver, não parece indicar esperanças de reciclagem política simplesmente por meio do processo eleitoral. Ainda que o Congresso se renove significativamente – como sempre –, a tendência é continuar trocando os seis por meias-dúzias. O PMDB será o fiel da balança com Lula, com Alckmin ou consigo mesmo. Sua capilaridade e força nos municípios farão várias dezenas de deputados, mancheias de senadores e mais ou menos uma dúzia de governadores. Podem trocar nomes como se trocam moscas, mas a tendência é que a dinâmica política da governabilidade seja a mesma. Não parece haver possibilidade de vir do PMDB nenhuma onda modernizadora do nosso sistema político. Algumas figuras isoladas até se esforçam, mas é pouco. Igualmente se pode dizer dos demais partidos. Depois da eleição, pergunte-se: qual é o novo? Talvez não haja resposta.

O futuro presidente precisará compor. Lula sabe-se lá com quem além do PMDB; Geraldo com o PFL e com o PMDB; o PMDB com o mundo. Lula, talvez mais isolado, seja obrigado, por fatores dinâmicos, a buscar ampliar seu governo e talvez caminhe em direção aos inimigos de hoje. Pode ser. Será o preço da sua governabilidade. Com Alckmin, voltaremos ao tempo e ao tipo da maioria de FHC: superior a de Lula, mas igualmente dividida. Interesses regionais, nepotismos, clientelismos e posturas reativas permanecerão. Os modernos continuarão divididos e, para buscar maioria, se unirão ao atraso. Filme antigo; novela que não acaba. A eleição não criará por mágica um novo Congresso e nem um novo sistema político. Isso levará tanto tempo.

Se não houver cobrança social, nesta eleição, a temática que nos envolverá será a do farisaísmo moral e do desenvolvimentismo retórico. Hoje, objetivamente, a possibilidade de um novo, reformado e transformador Congresso está fora do horizonte; sequer dentro do debate. Será difícil superar o atual modelo – diminuir juros, elevar o crescimento, promovendo cortes e reformas – sem sistema político capaz disto. Tentar fazê-lo sem atenção para isto, corresponderia em lógica a anedota do militante distraído que proclama: “Companheiros, companheiros! Estamos à beira do precipício; é preciso dar um passo à frente”.

O novo presidente – ainda que seja o mesmo – deverá ser mais que gerente; mais que líder carismático; mais que teimoso; mais que messiânico. Se não fizer política, nada muda. Alguma energia, retórica e promessas nos primeiros meses; muito trabalho interno em gerenciar o ingerenciável, em dirigir o indirigível. E só – se o bafo das denúncias e da maledicência o atingirem somente mais tarde que mais cedo. O ideal seria que houvesse liderança capaz de se movimentar e se comunicar dentro dos parâmetros dessa nova sociedade que se formou nesta última década e meia e incluir os setores que ficaram de fora. Mas quem seria esse sujeito? Faltam profissionais titulares e profissionais substitutos. Quadros, como se dizia no passado. Saudades do tempo em que Elis Regina cantava: “acender as velas já é profissão, quando não sou eu é Nara Leão”. Hoje, já sem Elis e sem Nara, não há profissionais, alternativas e nem alguém que se disponha acender as velas. Acender as velas já foi profissão; quando não há energia há escuridão.

Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Carlos.melo@isp.edu.br

 

 

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