Acervo | Análise da Conjuntura
País em clima de Dr. Fantástico
Carlos Alberto Furtado de Melo19 de abril de 2006
O pouco efeito eleitoral da queda de Antonio Palocci e a renitente posição de Lula nas pesquisas de popularidade (Datafolha) devem agravar o quadro de beligerância, aumentando os ataques da oposição, sobretudo, na CPI dos Bingos. Pessoas de maior proximidade com presidente – e, portanto, o próprio presidente – tendem a ficar ainda mais expostas. Paulo Okamotto, insistentemente, será chamado ao centro da cena. Antonio Palocci ainda dará mais pano para manga; qualquer ministro que sirva de escudo a Lula estará na berlinda. Até à eleição, a tensão aumentará e os acordos ficarão mais difíceis porque é impossível garantir o controle de tanta gente desconexa e inorgânica, fazendo jogos próprios na mídia e nos bastidores. Enfim parece justo falar em guerra de todos contra todos.
“A arte da guerra” é um clássico de 2.300 anos de idade. Seu autor, Sun Tzu, mestre da estratégia, criou uma tipologia dos campos de batalha, definindo “os nove terrenos” onde se dá a maioria das disputas. Esses terrenos, no âmbito da política, podem ser entendidos como as circunstâncias em que os atores se encontram. Para cada circunstância, no entanto, Sun Tzu propôs procedimentos que chamam atenção pela moderação e sobriedade.
Comparar “A arte da guerra” ao o governo Lula traz boas horas divertimento e perplexidade: no campo da batalha política, tudo foi feito ao contrário do razoável. Nos “nove terrenos”, governo e PT cometeram oito erros. Mas o nono – aquele que diz que “em terreno de morte, combata” – ainda será testado na campanha eleitoral que se inicia. A atmosfera eleitoral – depois de tantos meses de escândalos, crises, quedas de ministros e crimes confessos – parece ser mesmo de “matar ou morrer” (no sentido figurado, espera-se). Desse modo, a questão que nos sobra é: se haverá morte, haverá combate? O governo combaterá, a oposição combaterá; será o “bom combate” ou que tipo de combate será? Ou, antes, haveria munição para combater?
O duelo, ao que parece, já começou. O escândalo envolvendo a Nossa Caixa, banco paulista, com um esquema de publicidade e a revelação da incrível soma de 400 vestidos, supostamente, doados a Dona Lú – esposa do candidato do PSDB – apenas aquecem os motores do outro lado da peleja. Mais recentemente, surgiu um filho do governador que também possui uma sociedade suspeita. Pois, quase todo mundo tem filhos. No campo do PT, sabemos que minas e granadas explodem faz tempo. No fogo intenso, o sistema político parece ser o principal refém da batalha. Já há quem perceba isto e mande recados de que é preciso estabelecer limites. Mas eles serão possíveis num jogo – Corinthians X Palmeiras; Grêmio X Inter; Galo X Cruzeiro; Vasco X Flamengo – tão disputado?
A imprensa não deu muita bola, mas, em sua despedida do ministério, Ciro Gomes indicou o tamanho do risco. No seu estilo contundente, enfatizou: “eu tenho falado a meus amigos da oposição: ‘Olhem bem para onde vocês estão indo; olhem bem para onde vocês estão indo!’. Se os políticos resolverem, reciprocamente, provar ao povo que uns são corruptos, os outros também são; uns são devassos, os outros também são; uns são irresponsáveis, os outros também são. No fim nós vamos conseguir”. Para ele, “o PT vivia nesta história de ser o chicote moral da Nação e uma parte deste calor não é só eleitoral não. É 80% eleitoral, 10% real e 10% vingança. Não tem um camarada deste aí que não tenha um petista desse atravessado na goela”, disse.
E a disputa não se limita a “partido versus partido”. Dentro de cada legenda há uma desinteligência, uma quizila particular. A rixa atingiu níveis de vendeta e disputa pessoal. Todo mundo atira em todo mundo; não se sabe mais quem é aliado, quem é inimigo. Buratti detona Palocci; Serra olha torto para Alckmin; o presidente da CPMI, que é do PT, é chamado de Judas por deputado do seu próprio partido. A berlinda de Márcio Thomaz Bastos e a provação de Alckmin agradam igualmente a setores do PT e do PSDB. No PFL, a indicação do vice torna o ambiente mais quente; no PMDB, Garotinho esmurra a mesa para convencer que não é palhaço; ouve, em troca, que “cristão novo” fica atrás na missa. Quércia faz cara de paisagem. Itamar assobia. Sai da frente! A briga é feia e não há controle interno das tropas. E se não há sequer controle interno, as possibilidades de armistício se reduzem drasticamente. Alguém pode apertar o botão. Cuidado! Recomenda o manual de instrução.
Vivemos o clima de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), filme de Stanley Kubrick, com Peter Sellers. Estória que transcorre no interior da Guerra Fria, no contexto do que já foi chamado de overkill (morte total). Considerados os arsenais de russos e americanos, o ataque significaria, ao mesmo tempo, a morte de todos. Pois, não é que um general maluco ordena o ataque, apenas por acreditar ter ficado impotente em virtude da ingestão de água contaminada pela sabotagem russa? O humor é negro, evidentemente. O final do filme – para não estragar o prazer de quem se interessou – fica subentendido. Nosso sistema político, que já não tem saúde muito boa, pode ir pró beleléu de uma vez por todas. Talvez fosse mesmo melhor assim. Mas, independente de juízos de valor, o que chama atenção nessa crise é que qualquer um pode ser o Dr. Fantástico. Uma pena que não seja Peter Sellers.
Carlos Alberto Furtado de Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP, Professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Carlos.melo@isp.edu.br
Neamp - Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001
São Paulo - SP - Brasil
Tel/Fax.: (55 11) 3670 8517
neamp@pucsp.br

Rua Ministro Godoi, 969 - 4º andar - sala 4E-20 - CEP 05015-001




Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) de Miguel Chaia e Vera Lúcia Michalany Chaia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Unported. Based on a work at www.pucsp.br. Permissions beyond the scope of this license may be available at http://www.pucsp.br.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Design DTI-NMD |