O governo da história: a história do governo
Carlos Melo
Político experiente e economista respeitado, Antônio Delfim Netto publicou, na Folha, artigo dirigido a "cientistas sociais" que andam desancando o governo. Alertou para o fato de Lula ter "1º) implementado um programa de diminuição das desigualdades e redução da pobreza absoluta que o reelegeu; 2º) devolvido à mesa a questão do crescimento; 3º) enfrentado pela primeira vez os verdadeiros problemas que explicam a precariedade do ensino fundamental público e 4º) que isso foi feito com respeito à política fiscal e plena autonomia do Banco Central". É possível intuir que a seta de Delfim tenha o endereço de certo "cientista social" que passou pelo poder. Mas, serve também para muitos outros de nós.
Sob esses aspectos, realmente somos frequentemente injustos se não apenas com Lula também com limites da história. Ansiedade e aflição com o ritmo da política, diria. O fato é que governo tem realizações e quem não for anti-lulista de profissão e fé se verá obrigado a lhe atribuir o mérito de, no mínimo, não tornar as coisas piores do que são. Com as idiossincrasias do PT e o sistema político que o rodeia, feitos como esses não deixam de ser excepcionais.
Mas, é verdade também, muito "se fez" pela própria dinâmica dos fatos: se o "programa de diminuição das desigualdades" foi "implementado" pelo presidente, foi também o mínimo diante da expectativa gerada; "o debate sobre o crescimento" foi forjado na substituição agenda da estabilidade e no previsível esgotamento das políticas sociais; "o enfrentamento da precariedade do ensino fundamental" mal começou e, por fim, o "respeito à política fiscal" e a "plena autonomia do BC" foram impostos como premissa para a trégua econômica, em 2003. Na marra, praticamente.
O mérito de Lula está em deixar o barco fluir; ser seu fiador. Para as condições brasileiras e ilimitada capacidade de atrapalhar, de seus aliados, não foi pouco. Agiu no espírito da arte do possível. Ao fim, não importam os caminhos, chegou-se nas cercanias de Roma. Delfim não deixa de ter razão.
Pode-se objetar que "a régua do possível" ficou abaixo do plausível; faltam projeto e liderança ousada para articular instrumentos mais consistentes de reforma e crescimento, além arrojo no debate reformista. Mas, também é verdade que não há sistema político para isto e mesmo seu partido, o PT, não é lá uma Brastemp que se possa confiar. O jogo ficou truncado.
É claro que, diante da popularidade de que dispõe a ousadia de que carece traz riscos: a mosca azul do populismo ou a reação, no momento seguinte. O equilíbrio é difícil e não há sociedade organizada como dínamo de mudanças. Não só por acefalia, há inequívoca crise política, mais profunda e complicada que os escândalos produtores de "patos mancos" que se lê por aí. Lula não está só – tem a massa disforme ao seu lado –, mas, é um sobrecarregado arrimo de família. Gente humilde sem ter com quem contar.
A estocada de Delfim obriga a pensar mais profundamente: a crise está em Lula, ou, no final das contas, reside no desacerto geral da sociedade? Certamente, envolve mais atores, presentes dentro e fora do Estado e do sistema político. "Cientistas sociais", críticos e austeros, cumprem seu papel. Mas, talvez com exagero em exigir apenas de Lula respostas que o processo histórico ainda não viabilizou. Faltam externalidades capazes de parir consensos.
O sistema político arcaico e disfuncional é também resultado dos valores da sociedade. Não apenas porque não há mandato sem votos, como também porque se deixou de dar importância à política. Gradativamente, os melhores quadros da sociedade se afastaram. Sofre-se agora a ausência de elaboração e da massa crítica pouca. O homem público declinou; não apenas no Brasil.
Ao Estado sobraram "raspas" e "restos", misturados ao oportunismo, demagogia e farisaísmo de todo tipo. As poucas esperanças e espíritos públicos desmancham-se no ar. As instituições não se consolidaram ou se consolidam muito lentamente. Somos novos, mas o mundo é velho.
O déficit de qualidade parlamentar atinge níveis gritantes; políticos com o quê dizer são raros. Os "de opinião", por falta de curral, poucos se elegeram; Delfim, aliás, ficou de fora. Há um vácuo nas Elites do Congresso e a Vanguarda é incapaz de dirigir e superar crises. Alvejados, os mais experientes foram reduzidos a "patos mancos"; os novos, por enquanto, sequer são promessas. Basicamente, hoje tudo é transição e baixo clero.
O ciclo é vicioso e cruel. Além do sistema depauperado, órgãos de Estado autônomos e autômatos: não raro, Polícia Federal e Ministério Público agindo de si e para si. Não se trata de "mordaça", mas, não se pode arbitrar na marra o processo político por via da continuada desqualificação dos atores, do desrespeito aos sigilos e do atropelo à lei. Em Brasília, há um medo atroz do telefone; a síndrome do grampo. Não há privacidade. Bom e ruim, mas sabe-se lá o que os Arapongas vão vazar!
A primeira vítima é a qualidade do debate. O "furo", em prejuízo da reflexão. Na "lógica difusa", a concorrência reafirma o "jornalismo investigativo e independente", dependente de novos escândalos. Fiscalizar é importante, mas a forma desabrida leva à deformação do instrumento e à vulgarização do extraordinário. Fica faltando explicar o porquê das coisas. Ninguém entende; todos se afastam. Restam escombros.
Na boca da classe média, o gosto de sangue: a voracidade pelo próximo Judas – e judas há aos montes. Justificadamente enraivecida, falta-lhe clareza do processo e do momento. Diferente das rosas, os fatos falam por si e exalam outros perfumes. Na lama, inocentes e culpados não se diferenciam; todos afundam, sem escala, na direção de infernos públicos e particulares. Por fim, restará jogar a criança pela janela com a água do banho que lhe contaminou. O cinismo vitorioso dirá: nada presta, nada vale uma pataca do meu imposto ou um pão velho da minha caridade!
No quadro da conjuntura, os horrores de um Guernica ou o Inferno de Dante: sistema político viciado, sociedade apática, conceitos e preconceitos, guerra internas, disputas de espaço; Estado pouco eficiente; corrupção ancestral, sensacionalismo e superficialidade analítica; juízos de valor para dar e vender. A estupidez como espetáculo; a besta-fera mordendo o próprio rabo; a falta atávica de ponderação e a desorganização crescente de quase tudo.
Ao redor vemos Lula, paradoxalmente cúmplice e vítima, assim como nós. Um deus hipotético e impotente que, ao fim e ao cabo, também escreve por linhas tortas, como demonstra Delfim. Fecha os olhos, toca em frente, faz o possível não o necessário. Muita sorte, pouca liderança; o governo da história é, ao fim, a história deste governo. No pior dos mundos, amaldiçoa-se a escuridão sem que se pergunte pelos fósforos.
Carlos Melo, Cientista Político, doutor pela PUC SP, professor de Sociologia e Política do Ibmec São Paulo. Autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Editora Novo Conceito).

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