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ESTUDOS - I

Maria José Palo
PUC-SP

BOOTH, Wayne C. A Retórica da Ficção. (Título original The Retoric of Fiction). Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa-Portugal: Artes e Letras/Arcádia, 1983.

O Grupo de Pesquisa “O Narrador e as Fronteiras do relato”, constituído em 2005, junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), tem seu foco de estudos na valorização do processo de narratividade, cuja figura central é o Narrador e sua função humana: “contar histórias”. Uma das razões pelas quais a teoria de Booth faz-se necessária para nós pesquisadores refere-se à sua teoria do gênero narrativo, que se apresenta como um grande e completo catálogo de distinções de autores e leitores, ou chamados ”guias”, de extrema utilidade para a leitura de narrativas distintas.

Todavia, é notória a existência de uma larga crítica que ronda a obra de Booth, fato este que nos inspira finos cuidados quanto às competências de entendimento de seu pragmatismo retórico ficcional. De modo similar, nesta Série de Estudos I-II-III-IV, selecionamos alguns de seus critérios de uso em experiências de sondagem dos pontos de vista em aplicação nas narrativas em geral, pela via da reconstrução de leituras distintivas, com o objetivo de conhecer melhor como as histórias funcionam como histórias ou como narrativas.

A intenção central do teórico Booth é estudar a ficção como retórica e a retórica na ficção, valorizando toda crítica, não apenas apoiada pelo centramento em autores/textos/leitores, mas também nas transações existentes entre eles. Ou sintetizando: como autores desempenham evidências, que nos capacitam a recontar a história a nós mesmos, leitores, em sua plena eficácia.

A partir do princípio de que cada um de nós pode trabalhar naquilo que é sempre “a fronteira da arte da narrativa e seu estudo”, Booth entende que não há ninguém que não possa, ao aplicar o pensamento à experiência de leitura de primeira mão, ajudar a contá-la melhor.

Acreditamos que, para o início de um estudo sobre os tipos definidos de romance, não sejam os preconceitos nossos guias certos para uma possível classificação geral a lhes ser aplicada enquanto ficção, mas, sim, três fontes de critérios gerais:

  1. Quanto às qualidades gerais requeridas da obra: que o romance imite a vida, seja vivo, tenha vivacidade dramática, convicção, sinceridade, fidelidade, realização completa do tema, pureza de forma poética;
  2. Quanto às atitudes requeridas do autor: que o autor seja objetivo, desapaixonado, irônico, neutro, imparcial, impessoal; outros esperam que seja apaixonado e engajado;
  3. Quanto às atitudes requeridas do leitor: com tendência a interagir com o autor ideal, o leitor deve ser objetivo, irônico ou distanciado, inspirado pela compaixão ou pelo compromisso. Se a obra oferecer perguntas ao leitor, ele aceitaria a sua inconclusibilidade e as ambigüidades da vida. Inteligência e emoção devem contribuir para o jogo narrador-leitor a ser legitimado pelo romancista.

Esses três critérios remetidos à tríade - obras, autores e leitores - estão tão estreitamente associados que, embora distintos, não permitem Fronteiraz entre si. Booth, todavia, considera que, mesmo que críticos afirmem que uma obra não exista por si mesma, ou que as experiências do autor e do leitor sejam indistinguíveis, quando um romance é bem lido, “a boa arte” segundo ele, pode-se provar que todos os autores são desleais para com os padrões gerais professados por suas obras, ao atribuírem à técnica a força da retórica da ficção.

Olhando de perto obras de autores brasileiros modernos, como é o caso de Graciliano Ramos em Vidas Secas (título primeiro: O Mundo coberto de penas, 1938), observamos que o autor real desaparece, em favor dos paralelos épicos atribuídos à caracterização da personagem Fabiano, nela desenhando não só o pretenso herói, mas também o realismo cênico nordestino por meio de uma cartografia ali materializada em tensão dramática. 

O “narrador dramatizado” expõe a cena diretamente ao leitor, não a narra, exibe-a, mostra-a (o narrador onisciente desapareceu), por meio de diálogos e monólogos, sem prejudicar o realismo da história relatada. Ao contrário, o narrador exibe-a, em fotocromos verbalizados, aos olhos do leitor, como artifícios ficcionais mais latos e engenhosos.

Por outra via, o leitor permanece na crença da fidelidade, da paixão de continuar lendo, na expectativa da superação dos obstáculos entremeados por performances gestuais das personagens, vocalizes primários, cenários geográficos em apresentação artificial que almejam ser reais. Fabiano e Sinhá Vitória não chegam à apresentação de sua heroicidade, mas a deixam em promessa nos intervalos da narrativa experimentada pela leitura lúcida do leitor, tão próxima das relações estabelecidas com o narrador. Citando Joyce: “Em realidade, universalmente, as relações nunca se detêm; e o problema delicado do artista é o de traçar eternamente, por meio duma geometria sua, o círculo dentro do qual elas parecem, naturalmente, deter-se”. (Charles de Bernard e Gustave Flaubert; French Poets and Novelists. Londres, 1884, p. 201, in: GOODMAN, Paul, The Structure of Literature, Chicago, 1954).

Noutra expressão, podemos adiantar que o que os olhos mostram é aquilo de que estamos certos, ao oferecerem o espetáculo e o entretenimento à visão, ou seja, “dar a imagem e o sentido de certas coisas” (JAMES, H. The Art of Fiction and Other Essays. Morris Roberts (Ed). New York:1948, p.15), porém, com a intensidade centrada na composição do artista, na tentativa de falsificar a vida. Este é um fato revelador da retórica de uma ficção realista, que oferece maior intensidade de percepção do que aquela que ocorre na própria vida.

Toda a narratividade de Vidas Secas vai nessa direção ao preservar e adiar a intensidade dramática na complexa consciência de Fabiano, contrastada com o frescor de suas emoções, que são deflagradas no confronto entre duas realidades contraditórias: a cidade e o sertão nordestino.

Para Booth, Joyce, em seu dizer, revela também um modo de aumentar o prazer da leitura derivado das qualidades presentes no tratamento diferente da intensidade do realismo que, na vida, não tem semelhante. Toda e qualquer arquitetura técnica que interfira no trabalho com a verdade provém da qualidade e da capacidade da fina sensibilidade do artista. Ele mesmo testemunha: “Se o processo mais semelhante ao processo da mente usada como observador tem que ser o mais polido dos espelhos possíveis, sacrificar-se-á a ilusão” (BOOTH, 1983, p. 63). Trata-se dos refletores lúcidos que mantêm a ilusão sem destruir a intensidade da vida cifrada em dramaticidade e densidade escritural.

Intensidade e dramaticidade juntas fazem de todos os romances uma forma elástica e prodigiosa em sua ambigüidade, aberta às indagações dos leitores. Segundo Booth, essa forma “dita uma retórica geral a serviço do realismo e não uma retórica particular com vista à experiência de efeitos distintivos” (BOOTH, 1983, p. 67). Melhor dizendo, todo romance gera sua própria retórica.

Conforme as teorias de Flaubert e James Joyce, o autor não deve estar nos bastidores, tudo observando, mas tem que dar a ilusão de que ele não existe: “o romancista pode ser sua testemunha ou seu cúmplice, mas não pode ser os dois ao mesmo tempo. O romancista tem que ser e estar ou dentro, ou fora” (BOOTH, 1983, p. 68).

Entretanto, se, para Booth, Joyce inaugura o novo romance, Sartre pede um realismo subjetivo absoluto, além do realismo em bruto da subjetividade, mas sem o distanciamento de Joyce, com a convicção de que as personagens agem no tempo livremente. Sartre deseja “que os romances não sejam vistos como produtos do homem, mas como elementos naturais”, ou seja, devem desmanchar o sentido de liberdade real face ao absurdo do caos: a personagem passa a enfrentar o caos e o realismo deve integrar o autor à duração dos acontecimentos, da mesma maneira como é experimentada pela personagem. Por isso, no romance “o autor ou diz tudo ou cala-se; acima de tudo, não deve omitir nem saltar por cima de nada”. (BOOTH, 1983, p. 69)

Em Vidas Secas, o autor cala-se e seu silêncio se transfere às personagens para marcar a duração dos fatos dramáticos na intensidade de suas paixões e emoções, tão desordenadas quanto a realidade vivida na complexidade emocional e moral do homem do sertão brasileiro. A finalidade é alcançar o efeito épico, trágico ou cômico, criando um leitor capaz de experimentá-lo. Nesse sentido, o leitor de ficção é aquele que reúne o que o romance apresenta: sussurros, gestos, julgamentos, emoções e desejos. Ele faz a síntese tácita com o romancista e dele não se separa,  pois deve também mentir para mascarar a verdade estética do trabalho realista.

Booth defende várias opiniões e posições em relação ao conceito de realismo, ao qual pretendemos chegar, ao final desta série de Estudos, para melhor entender escritores como Joyce, Gide, Proust, Mann, Woolf, escritores da corrente da consciência, assim como nossos romancistas brasileiros: José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, e os contemporâneos, a respeito do termo realidade e suas afirmações contraditórias. Para alcançar este estudo do realismo, Booth divide-o em programas de quatro espécies, com base em três variantes: tema, estrutura e técnica:

  1. realistas que fazem a correspondência tema – realidade exterior ao livro, que chama de realidade social, o que exige técnica e forma;
  2. realistas que aproximam a realidade da verdade metafísica – que exigem um jogo de requisitos técnicos e formais invariáveis;
  3. realistas que procuram transcrever a realidade a partir das sensações geradas por superfícies, ou seja, não mais fiéis à visão geral das coisas.
  4. realistas que procuram uma estrutura ou evolução de acontecimentos, procurando refletir o provável das formas que a vida revela. Ao depreciarem o enredo, passam a negar a vida e seus enredos e a literatura é que passa a ser análoga à vida.

Booth nega qualquer razão para que a estrutura realista exija uma forma de técnica narrativa particular. Se, para alguns, a história deve ser narrada como poderia ser contada na vida real, para outros, a narração realista tem que disfarçar a sua própria natureza de narração, sob a ilusão de que os acontecimentos decorrem sem a mediação do autor. Um problema a ser pensado na produção literária contemporânea.

As três variantes - tema, estrutura e técnica -, segundo o teórico, dependem das noções de finalidade, função ou efeito, demarcando, lado a lado, o realismo como um fim em si mesmo, e o realismo como um meio para outros fins. Este binômio também se remete aos autores: os didáticos (Sartre, Swift, Voltaire) e os miméticos ou objetivos (Fielding, Dickens, Thakeray). A partir dessa dicotomia, também são descritos dois tipos de literatura e dois tipos de crítica, diferentemente. Um ponto de grande interesse para nossas considerações futuras.

Narradores tentam retirar seus traços identitários da superfície do processo de narratividade, tendo a narração como um fim em si próprio, e considerando suas intrusões como fraquezas; deslocando seu ponto de vista, mobilizam o grau de verossimilhança que existe numa obra por um tipo de técnica artificiosa, seguindo o pensamento de Booth:
Hoje, é-nos fácil ver o que, no princípio do século, não era tão claro; quer um romancista impessoal se esconda por trás dum único narrador ou observador, quer dos múltiplos pontos de vista de Ulysses e As I Lay dying ou ainda, das superfícies objetivas de The Awkward Age e de Parents and Children, de Compton-Burnett, a verdade é que nunca se pode silenciar a voz do autor. (1983, p. 77).

Na Literatura Brasileira, Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Os Sertões, de Euclides da Cunha, ou Macunaíma, de Mário de Andrade  revelam o compromisso de seus narradores, mais pela paixão de se descreverem como modelos ideais de seus próprios leitores. Fisionomias ou máscaras que os leitores vestirão, sem dúvida, em favor do autor real, denominação boothiana, em versões oficiais de si próprias.

Em suma, essas diferenças de entendimento das três variantes no programa das quatro espécies de realismo de Booth, neste Estudo – I, permitem-nos deduzir que autores, no século XX, e mesmo no século XXI, fazem histórias que se contam a si mesmas, liberadas das suas intervenções; eles fazem ficção moderna, porém, falta-lhes saber escolher o que dramatizar em profundidade, o que reduzir, o que sumarizar e o que salientar. Reclamam por técnicas ficcionais concretas em graus de utilidade em resposta à obra, conforme critica o teórico Booth.

Para o autor, aprender a fazer ficção não se resume em partir de regras abstratas, sabendo que o realismo nem é uma teoria nem uma mistura de teorias; para Booth, é uma expressão do que mais interessou ao homem. Exemplo de uma modernidade maior é o escritor João Guimarães Rosa que, na sucessão histórica de modelos recebidos da Literatura Brasileira, ganha na complexidade de sua obra-prima Grande Sertão: veredas um paradigma de narratividade numa escritura realista fantástica irrepetível, única, mantendo todo o sistema literário sob a iconização e a presentificação do processo criador. Outros autores contemporâneos também nos oferecem arquétipos de co-realidade a servirem, em futuro, de pretextos originais para o estudo do realismo sob o ponto de vista estético da retórica ficcional: Chico Buarque, Milton Hatoun, Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho, Patrícia Melo, André Sant´Anna , dentre outros.

Se qualquer um desses autores conseguiu ou não manter o suspense, ou impedir uma leitura sentimental da personagem pelo leitor, ao fazer uma leitura rivalizando ou desfigurando certa personagem, ou mesmo mitificando-a, são aspectos concretos, dedutíveis, que podem nos proporcionar, assim como propiciou a Booth, um ponto de partida inferencial para se entender a retórica da ficção no contexto homólogo da literatura universal.
Deixaremos para Estudos -II, em forma de questões, aqueles aspectos que nos permitirão expor um pouco mais da contribuição de Booth para o estudo da narratividade e, em particular, das figuras do autor e do narrador:

  1. O que significa objetividade na ficção realista do autor? Qual é sua tarefa como testemunha e escriba da sua própria obra? O que é autor implícito?
  2. Como o narrador se configura e quais os graus de distanciamentos e aproximações que tem da realidade via engenharia retórica? O que significa e quais são os modos de atuação do alter ego do autor na relação com o leitor?
  3.  Quais são os objetivos específicos do processo narrativo agora lidos como “guias de leitura” (Booth) de modos de ser de uma narrativa que deseja, pela performance do narrador,  ser uma “história recontada e mostrada”?