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ORALIDADE E CULTURA ESCRITA: A TECNOLOGIZAÇÃO DA PALAVRA
ONG, Walter J. Oralidade e Cultura Escrita. Trad. Enid Abreu Dobránsky. São Paulo: Papirus,1998.  

“No princípio era o verbo”. Como no Gênesis, primeiro livro de Moisés, os traços de oralidade já se evidenciam, logo de início, nos vários “es” que introduzem a narração da criação do mundo: “(...) E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”. Mesmo impressos, ainda que retocados para atender ao gosto de quem os edita e lêem, também os contos de magia trazem uma clara relação com a tradição oral em que foram gerados.

Esses exemplos apontam para o fato, hoje incontestável, de que no alvorecer e durante muito tempo da civilização do homem sobre a terra, a literatura tinha destinação oral e não escrita. Originariamente, a apreensão do literário dava-se pela percepção auditiva e não pelo sentido visual da leitura silenciosa, como hoje é hábito nas sociedades quirográficas, isto é, que desenvolveram a escrita, e que, posteriormente, adotaram a impressão.

Publicado em 1982 em língua inglesa, traduzido e editado no Brasil em 1998, Oralidade e Cultura Escrita foi escrito pelo padre jesuíta americano Walter J. Ong, morto aos 90 anos, em 2003. É uma obra que, em 223 páginas e 7 capítulos, analisa as relações entre a oralidade e a cultura escrita, evidenciando como o pensamento e a expressão de ambas as modalidades da língua se diferenciam, ao mesmo tempo em que investiga a atividade oral como recurso comunicativo e participante dos processos cognitivos.

É um estudo fundamental para todos que se interessam pelo tema da oralidade e a invenção da escrita, pois Walter J. Ong observa que tanto o lingüista Ferdinand de Saussure (1857 – 1913), como seu contemporâneo inglês, Henry Sweet (1845 – 1912), destacavam a dimensão sonora das palavras, mas chama a atenção para o fato do primeiro considerar a escrita “como uma espécie de complemento do discurso oral, e não como transformadora da verbalização”.

Mais surpreendente, o autor nos informa que é por meio de um estudo iniciado por Milman Parry (1902 – 1935) e finalizado por Albert B. Lord sobre a natureza oral dos epítetos homéricos na Odisséia e na Ilíada, que o tema começa a receber a atenção dos teóricos da lingüística aplicada e da sociolingüística. Continuando essa linha de pesquisa, um dos nomes de maior destaque foi Eric A. Havelock, seguido por McLuhan e Okpewho, entre outros.

É constatado por Ong uma grande quantidade de estudos de outros autores que objetivam a comparação entre a linguagem falada e a escrita de falantes que dominam as duas expressões de linguagem. Todavia, sua abordagem privilegia a oralidade primária, ou seja, a daquelas pessoas que não sabem ler nem escrever e que por isso aprendem ouvindo e repetindo, fazendo uso de provérbios e frases formulares, que, combinadas, expressam a sabedoria dos que vivenciam e observam as práticas culturais coletivas, mas não estudam.

Vale ressaltar, no entanto, que segundo o autor, mesmo nas comunidades de oralidade secundária, que por oposição à primária, corresponde àquelas que possuem uma cultura de alta tecnologia em que a oralidade é veiculada pelos meios de comunicação modernos, é possível encontrar resquícios preservados de oralidade em meio a textos escritos e até mesmo lhes dando suporte estrutural.

A Oralidade em Homero
Contra todas as expectativas da crítica erudita, Milman Parry (1928), partindo de observações de outros estudiosos e de suas próprias convicções, descobre que a singularidade poética presente na Ilíada e na Odisséia de Homero teve sua origem na oralidade dos aedos e rapsodos, e em manuscritos de dois ou três séculos posteriores aos poemas. Além do que, havia na estrutura dos poemas de Homero, algo semelhante ao que se encontra nas narrativas orais em todo mundo: o engendramento da história é costurado pela inserção de frases formulares pré-existentes, repetidas de acordo com a necessidade métrica e expressão de idéias vitais à narrativa. Depois de observar e ouvir os cantadores de histórias épicas da ex Iugoslávia, cujo sistema de criação poética se assemelhava às produções de Homero, Milman Parry (1902–1935) e seu companheiro de pesquisa Albert Lord chegaram à conclusão de que “virtualmente, todo traço distintivo da poesia homérica deve-se à economia imposta pelos métodos orais de composição. Estes podem ser reconstruídos por um estudo detalhado do próprio verso quando nos desvencilhamos dos pressupostos sobre os processos de expressão e de pensamento arraigados na psique por gerações de cultura escrita”.

Outros Estudos
Os estudos de Parry desencadearam uma sucessão de trabalhos sobre a oralidade na história da literatura e da cultura. Um nome de destaque foi o professor em Harvard e Yale, Eric Havelock, que estudou o alfabeto grego relacionando-o à cultura helenística, determinando uma mudança nas mentalidades. O semiótico Marshall McLuhan e outros sondaram a respeito das operações mentais efetuadas na oralidade e na cultura escrita. Incluindo-se entre aqueles que seguiram a linha proposta por Parry, o lingüista Walter Ong assegura a inesgotável capacidade de associação das descobertas dos helenistas americanos com outros campos de estudos.

Ampliando a visão dessas possibilidades de conexões, Ong cita alguns antropólogos que abraçaram a questão da oralidade mais profundamente como Jack Goody , que estuda a passagem de um estado de consciência a outro mais elaborado e complexo e Lévi-Strauss que estuda o “pensamento selvagem” e suas  transformações para outros mais elaborados. Para Ong, tal conexão poderia ser simplificada, levando-se em consideração a passagem do estágio oral para o escrito, nas sociedades em estudo.

O Poder da Palavra
Nas culturas orais o significado da palavra difere da cultura escrita. Se nas primeiras a palavra existe enquanto narrada, ou seja, é perecível e só permanece enquanto som, na segunda ela é recuperável se armazenada em livros. Segundo o autor, isto explica, provavelmente, o poder atribuído às palavras nas comunidades orais, para as quais  a palavra proferida é depositária de uma dimensão potencialmente mágica.

Entretanto, numa cultura oral, a sujeição das palavras ao som é tão determinante para as maneiras de expressá-las como para os processos mentais que as produzem. Como as idéias não podem ser anotadas, o pensamento necessita do amparo virtual da comunicação. Para reter e recuperar o pensamento, é preciso articulá-lo com modelos ou arquétipos mnemônicos, talhados para serem repetidos oralmente.

Assim, ritmo, antíteses, aliterações, assonâncias e sintaxe são elementos que, entrelaçados, auxiliam no processo de memorização das formas poéticas, como: provérbios, adágios e partes temáticas de narrativas, dentre elas o herói e o combate. Segundo Ong, é ouvindo, assimilando e repetindo o que ouvem, que os participantes de culturas orais apreendem o domínio das fórmulas padronizadas do discurso poético e se tornam aptos a reproduzi-las, e até recombiná-las no reconto.

Características da Oralidade
Mais aditivos que subordinativos, mais condensados que analíticos, assim como mais redundantes , o fato é que o pensamento e a expressão nas culturas orais têm uma propensão mais conservadora e próxima aos hábitos do cotidiano. Percebe-se, então, que os processos de pensamento e expressão nasceram de competências puramente naturais.

Embora seja inegável o avanço tecnológico possibilitado pela escrita na ciência, nas artes e mesmo na linguagem, as culturas orais produzem vocalizações artísticas valiosas que são impossibilitadas para as mentes letradas, cujos processos cognitivos originam-se não de capacidades naturais, mas da organização estrutural dessas capacidades.

A Transformação
O deslocamento sensorial efetuado pela aquisição da escrita transforma a palavra e seu uso, assim como os modos do pensamento. Da dimensão oral à perspectiva imagética, a escrita estabelece uma espécie de distanciamento que aponta para um refinamento da palavra, agora objeto de análise e aprimoramento, já que os procedimentos de escolha para registro obedecem a regras anteriormente determinadas, e a palavra pode ser apagada ou mudada na superfície do texto.

Com a palavra impressa, os modos de apreensão e transmissão dos textos se modificam ainda mais. A ciência e a literatura são afetadas pela qualidade e capacidade de reprodução do suporte, o que também contribui para a evolução das capacidades analíticas e interpretativas dos leitores do texto impresso.

Fundamentado em estudos de teóricos de várias áreas do conhecimento - lingüístico, literário e semiótico -, Walter J. Ong mostra, nessa obra, não somente a oralidade enquanto meio comunicativo comprometido com os processos do pensamento, mas também o abalo provocado pela aquisição da escrita nos processos de apreensão do conhecimento humano. Amostra de uma reflexão abrangente, que veio reconduzir o tema da oralidade para novas possibilidades de conexões com outros campos de estudos.

Mirtes Portella
Mestranda, Literatura e Crítica Literária
PUC-SP